Nome do Projeto
A circulação do discurso de extrema-direita no Brasil
Ênfase
Pesquisa
Data inicial - Data final
01/03/2022 - 31/12/2024
Unidade de Origem
Coordenador Atual
Área CNPq
Linguística, Letras e Artes
Resumo
Neste projeto, propomos o estudo do funcionamento do discurso de extrema direita no interior de diferentes formações discursivas. Para tanto, iremos aprofundar a discussão acerca do surgimento e manutenção do pensamento de extrema direita na sociedade, trabalhando com temas como fascismo, autoritarismo e conservadorismo, bem como de que modo esse pensamento se discursivisa. Interessa ver, especificamente, o percurso no interdiscurso de saberes organizados em formações discursivas marcadas por posições de extrema direita e sua relação com outras formações discursivas, verificando que elementos plantados no interior de outras FDs permitem um funcionamento que não oferece resistência aos saberes de estrema direita, chegando mesmo a conformar esses saberes e resolver a convivência com as contradições que se instauram quando da entrada/invasão do discurso conservador. Acredita-se que, dessa contradição que habita o tecido social, os sujeitos realizam movimentos de conformação e apagamento, bem como estabelecem uma hierarquia entre os saberes, de modo a solucionar a contradição instaurada pela tomada de posição identificada com uma FD de direita. Além disso, acredita-se que a mídia tradicional - mesmo aqueles veículos cujos discursos exaltam as liberdades - é basilar para o ressurgimento e sedimentação do discurso de extrema-direita no Brasil. A pesquisa tem sustentação teórica na Análise de Discurso Francesa (Michel Pêcheux) e terá seu corpus constituído a partir de discursos veiculados em dispositivos midiáticos.

Objetivo Geral

Compreender a construção e o funcionamento do discurso de extrema-direita no Brasil, bem como a permeabilidade das formações discursivas.

Justificativa

A história política brasileira recente, com a eleição de Jair Messias Bolsonaro para Presidente da República em 2018, ainda que tenha suas peculiaridades, está em consonância com o avanço de posições conservadoras e de extrema direita em vários países do mundo. Esse avanço tem sido objeto de estudos das ciências sociais de um modo geral. Esta pesquisa, na área do discurso, toma como objeto de estudo os percursos que discursos de extrema-direita – ora também designados neste trabalho como discursos neofascistas –, fazem na via do interdiscurso na sociedade, e como se ramificam atingindo diferentes formações discursivas. Assim, interessa identificar os saberes da formação discursiva de extrema-direita, o trânsito desses saberes no interdiscurso e de que forma se dá o processo de circulação e entrada no discurso de sujeitos filiados a distintas formações discursivas, muitas delas antagônicas, instaurando a conflito e fazendo com que o sujeito acomode o estranhamento e suporte a contradição.
A presença de Jair Bolsonaro como candidato à presidência na campanha eleitoral de 2018 no Brasil originou, ainda no primeiro turno, o movimento designado de Ele Não (#Ele Não). Liderado por mulheres e com pautas abrangendo questões feministas e de gênero, organizado a partir das redes sociais, mobilizou e levou milhares de pessoas às ruas em setembro de 2018 (conforme dados coletados no Portal Uol, a manifestação na cidade de São Paulo reuniu 150 mil pessoas), indicando uma grande rejeição de Bolsonaro. Estranhamente, o candidato repudiado nas ruas do país cresce nas pesquisas e acaba por vencer as eleições, disputadas no segundo turno com Fernando Haddad, candidato de esquerda, do Partido dos Trabalhadores. Analistas políticos creditaram a vitória da extrema direita a outras manifestações que vieram a se mostrar mais vigorosas na sociedade: a rejeição à esquerda, o antilulismo/antipetismo, a propagação de um grande número de fake news, espalhadas ao longo da campanha eleitoral, e o apoio do segmento evangélico à chapa de militares da reserva Bolsonaro-Mourão.
Passados três anos das eleições, mesmo com o desgaste do Presidente da República, seja por conta da forma negacionista como tratou a pandemia de COVID-19, seja pelo desastre na economia, seja pelos confrontos com a Suprema Corte do país, o Brasil continua polarizado e milhares de pessoas saem às ruas no dia da Independência – 7 de setembro de 2021para pedir que Bolsonaro dê um golpe e instaure uma ditadura militar. Essa pauta de um novo golpe militar no Brasil vem sendo discutida publicamente e, de modo perplexo, entra normalizada na mídia, como se fosse legítima e aceitável. Então a pergunta que se coloca aqui é de que modo um discurso com tantos elementos de rejeição na sociedade ganhou espaço no interior de diferentes formações discursivas e se consumou com a eleição de Bolsonaro em 2018 e o fortalecimento do bolsonarismo. De outro modo, pergunta-se como uma parte da população de um país que passou por um longo período ditadura militar (1964-1985) sai às ruas para pedir a implantação de uma ditadura em seu próprio país.
Essas questões movimentam a teoria para examinar, de um lado, a construção do discurso de extrema-direita no Brasil, suas condições de produção e configuração e, de outro, a circulação e adesão desse discurso. Acreditamos que a ascensão do bolsonarismo é resultado de uma circulação bem particular que mobiliza os campos discursivos religioso e midiático.
A atividade nas bordas das formações discursivas (FDs) permite ver as relações entre FDs e como os sujeitos se movimentam dando entrada ao discurso de extrema-direita. Pêcheux (1990, p. 314), afirma que as fronteiras da FD são porosas, constituindo-se um espaço de reformulação/transformação ou de reprodução/repetição. Se, por um lado, observamos que recentemente o discurso de extrema-direita avança em diferentes domínios do interdiscurso, por outro, há de se considerar as condições históricas para a disseminação desse pensamento, o que nos leva nesta pesquisa aos campos religioso e midiático. Nossa hipótese é que a mídia, ainda que recorra repetidamente a enunciados como liberdade de expressão, diversidade, igualdade racial e estado democrático de direito, desenhando o clivo em relação ao pensamento de extrema-direita – hoje muito marcado no Brasil pelo discurso das religiões neopentecostais –, aproxima-se desse pensamento por meio de bandeiras históricas que regram suas práticas discursivas ordinárias: o liberalismo, a visão degradante da política e dos políticos e a corrupção, como o grande carro-chefe desse discurso.
Mobilizamos preliminarmente a noções de formação discursiva e pré-construído, que acabam por entrelaçar as noções de contradição, ideologia e sujeito.
Segundo Pêcheux (1988), “a formação discursiva é aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pela luta de classes, determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 1988, p. 160). Tal definição nos leva a pesquisar que ordem de determinações autorizam os ataques à democracia, às liberdades, aos direitos, etc., inclusive por parte de sujeitos inscritos em FDs não marcadas como de extrema-direita. De outro modo, podemos perguntar como se estabelece a chancela de saberes estranhos à FD. O próprio Pêcheux – Remontémonos de Foucault a Spinoza (1980) –, em crítica feita à regularidade que a noção de FD tem em Foucault, avista a FD como espaço heterogêneo e contraditório. Courtine (1981, 1982) também traz à discussão o caráter contraditório da formação discursiva. Segundo o autor a FD possui fronteiras instáveis, o que não permite separar o que é próprio da FD e o que lhe é externo, trazendo então a noção de unidade dividida, prevendo um funcionamento em que o mesmo, próprio da FD, e o diferente (o que lhe é externo) coexistem na FD (COURTINE, 1982). Assim, em parte, esse acolhimento do discurso neofascista está explicado pela categoria da contradição, que faz parte do mecanismo de funcionamento da FD, que vai operar de modo a resolver a tensão que ali se estabelece. Mas também vemos funcionar um conjunto de condições agendadas pela mídia e acessadas pela memória, como se observa no largo espaço destinado pela grande imprensa à questão da corrupção nos governos de esquerda do Brasil a partir de 2003, que culminam com o golpe político-jurídico-midiático de 2016, que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores).
As noções de pré-construído e discurso transverso são importantes para pensar sobre a entrada e o espaço que o discurso de extrema-direita ganha em diferentes FDs, como invade, se conforma e se incorpora. O discurso transverso denota a heterogeneidade da FD, uma vez que traz um discurso acertado em outro lugar (outra FD) sob a forma de pré-construído, é da ordem do interdiscurso e articula no intradiscurso diferentes pré-construídos. Pêcheux (1988, p. 167) destaca que o discurso-transverso coloca em conexão elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso, enquanto pré-construídos. Assim, o intradiscurso, enquanto “fio do discurso” do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma “interioridade” inteiramente determinada como tal “do exterior”. Também Courtine (1981, p. 36 e 105), ao falar sobre a articulação de enunciados, afirma que o interdiscurso é o lugar em que se constitui o pré-construído, fornecendo elementos para a enunciação de uma sequência discursiva, ao mesmo tempo em que atravessa e conecta esses objetos, funcionando como um discurso transverso, a partir do qual se realiza a articulação em que o sujeito enunciador dá coerência ao fio do seu discurso. Assim, interessa-nos compreender 1) como a tensão que se instaura com a entrada do discurso de extrema-direita (enquanto discurso transverso, conforme Pêcheux, 1990, p. 314) se resolve no interior de diferentes FDs; 2) como o processo de circulação apaga a contradição, de modo que o discurso de extrema-direita não afronta a FD e passa à normalização; 3) e que condições históricas criaram as premissas para chancela de saberes de extrema-direita.
Para além das questões teóricas e analíticas levantadas, esse projeto justifica-se ainda pela sua vinculação ao estágio pós-doutoral da pesquisadora, que será realizado em Buenos Aires sob a orientação da Dr.ª Maria Alejandra Vitale, que pesquisa o discurso de direita, com ênfase em arquivos vinculados ao período de ditadura militar da Argentina (1966-1973).

Metodologia

Essa pesquisa busca responder às seguintes questões:
1) Que condições históricas criaram as premissas para chancela de saberes de extrema-direita no Brasil?
2) Como a tensão que se instaura com a entrada do discurso de extrema-direita se resolve no interior de diferentes formações discursivas?
3) Como o processo de circulação nas mídias apaga a contradição, de modo que o discurso de extrema-direita não afronta algumas formações discursivas e passa à normalização?
4) Como as diferentes mídias resolvem no plano do discurso a contradição que se estabelece entre as pautas econômicas e as pautas sociais e de costumes?
Para discutir essas questões, tomamos a Análise do Discurso francesa, teoria que fundamenta este projeto, que é, conforme Orlandi (1996), uma disciplina de entremeio e, como tal, relaciona-se com outras áreas do conhecimento, movimentando pressupostos além daqueles próprios da área dos estudos da linguagem. Assim, os estudos teóricos da pesquisa abrangerão 1) o estudo de textos do quadro teórico-conceitual da Análise do Discurso, fundada por Michel Pêcheux; 2) o estudo de noções políticas e filosóficas sobre as temáticas política, regimes de governo, democracia, ditadura, corrupção, direita, extrema-direita, esquerda, ideologia, contradição e hegemonia, entre outras; 3) estudos de temas das áreas de comunicação e religião.
O corpus do trabalho será composto de discursos cujo acesso se dá por meio de textos de notícia e de opinião que circularam em diferentes mídias: telejornais, redes sociais, portais de notícias blogs, jornais impressos, etc., abrangendo basicamente os seguintes temas: corrupção, ditadura, democracia, política, liberdade, religião e a pauta de costumes (homossexualidade, aborto, sexo, etc.).
Quanto à análise, iremos trabalhar com recortes discursivos, que, de acordo com Orlandi (1984, p.14), compõem uma unidade discursiva composta de fragmentos correlacionados de linguagem e situação. São, portanto, fragmentos da situação discursiva, recolhidos conforme as condições de produção, objetivos e alcance da análise. A cada recorte realizado no corpus faremos corresponder uma sequência discursiva (Sd), ou seja, sequências de discurso efetivo, representativas do discurso em estudo e que nos dão acesso às formações discursivas. Tomaremos a formação discursiva, aqui denominada, de extrema-direita como formação discursiva de referência (Fdr), a partir da qual observaremos os movimentos das demais formações discursivas.
Buscamos analisar os fatos discursivos a partir condições de produção, identificando a configuração, circulação e adesão do discurso de extrema-direita, tendo como condução e ponto de partida para a análise a designação “corrupção” no período de redemocratização do país, a contar da posse do primeiro governo eleito por eleição direta após a ditadura militar – Presidente Fernando Collor de Mello - 15 de março de 1990.
A designação indica uma forma específica de compreender a palavra e é uma forma de predicação. Guimarães (2002, p. 82) afirma que a designação é instável, mas trata-se de uma instabilidade que se apresenta na forma da estabilidade do sentido. São, segundo esse autor, instáveis e diferentes entre si, promovendo novas significações mesmo na repetição, uma vez que as palavras da língua significam ao funcionarem no acontecimento (2002, p. 82). A escolha da designação “corrupção” se deu por observação empírica, a partir da qual se constatou que o tema é recorrente nas diferentes mídias e pauta tanto no campo do pensamento de direita quanto no de esquerda. O efeito de identidade que desenha a designação “corrupção” – todo mundo sabe o que significa – , e também de outras formas linguísticas, vai ser analisado justamente para examinar a instabilidade dos sentidos no interior das formações discursivas. A partir da circulação dessa designação, será feito o levantamento das diferentes formações discursivas, serão analisados os movimento e vínculos entre diferentes FDs em relação às temáticas de interesse desse projeto.

Indicadores, Metas e Resultados

Indicador 1: aprofundamento nos estudos da obra de Michel Pêcheux e em estudos de noções políticas e filosóficas referentes à pesquisa.
Metas: sistematizar as noções de Análise do Discurso, bem como dos conceitos políticos e filosóficos pertinentes ao trabalho.
Resultado esperado: elaboração de referencial teórico para a análise dos discursos.

Indicador 2: investigação de como se dá a construção do discurso de extrema-direita e as relações que se estabelecem entre diferentes formações discursivas.
Metas: identificar marcas do caráter heterogêneo das formações discursivas no funcionamento de temas como corrupção, ditadura, democracia, política, liberdade, religião e aqueles ligados à pauta de costumes (homossexualidade, aborto, sexo, etc.) em diferentes mídias.
Resultado esperado: compreensão do funcionamento do discurso de direita e os efeitos da contradição no interior das FDs.

Indicador 3: Produção de artigos sobre questão da construção e sedimentação do discurso de extrema-direita no Brasil e sobre a oscilação da grande mídia entre pautas progressistas e de extrema-direita.
Meta: produzir, no mínimo, dois artigos.
Resultado esperado: publicação de artigos em revistas indexadas.

Indicador 4: integração com pesquisadores da Universidade de Buenos Aires.
Meta: realizar parcerias teóricas e práticas com pesquisadores argentinos.
Resultado: publicações conjuntas, participação em mesas-redondas e em bancas de mestrado e doutorado.

Equipe do Projeto

NomeCH SemanalData inicialData final
MARCIA DRESCH6
MARIA DE CÁSSIA SPECHT PINTANEL

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