Nome do Projeto
Revolucionando valores com Arendt e Marcuse: respondendo aos desafios do Antropoceno
Ênfase
Pesquisa
Data inicial - Data final
01/03/2023 - 31/12/2025
Unidade de Origem
Coordenador Atual
Área CNPq
Ciências Humanas
Resumo
O conceito de Antropoceno tem a sua origem na geologia e baseia-se no pressuposto de que a humanidade se transformou numa força geológica, alterando a Terra e os seus sistemas naturais numa escala sem precedentes e tornando difusa a linha divisória entre natureza e sociedade. Esta nova compreensão do poder do ser humano sobre as condições básicas de vida na Terra é acompanhada pela exigência de uma revolução de valores capaz de produzir linhas de orientação éticas e políticas aptas a dar resposta à crise ecológica em que nos encontramos e à ameaça existencial em que ela se traduz. Este projeto tem como referencial teórico a obra de Hannah Arendt e tem como primeiro propósito aproximar a noção de Antropoceno à noção arendtiana de ação na natureza (acting into nature), usando-as como eixos de compreensão do caráter radicalmente novo da condição contemporânea em termos ético, políticos, ecológicos, existenciais e mesmo ontológicos. Em segundo lugar, este projeto pretende também explorar a crítica do valor em Arendt e em Herbert Marcuse, por via das reflexões de ambos em torno da arte, do seu potencial emancipatório e das suas possíveis contribuições para uma resposta à reivindicação de novos referenciais normativos por parte de uma vida humana no Antropoceno. Em terceiro lugar, e por extensão, o presente projeto propõe-se explorar as dimensões ontológico-políticas de possíveis respostas a essas reivindicações, nomeadamente através das reflexões arendtianas em torno da crise das democracias representativas, da experiência revolucionária e dos conselhos revolucionários.

Objetivo Geral

Os objetivos serão divididos em nos 3 âmbitos da atividade docente no Ensino Superior: Pesquisa, Ensino e Extensão.

Objetivos de Pesquisa:
O presente projeto tem 4 objetivos gerais de pesquisa, os quais se traduzirão em textos para publicação em revista nacionais e internacionais, em língua portuguesa e inglesa, e na participação em e organização de eventos acadêmicos subordinados às questões subjacentes:
1. Explorar uma leitura do Antropoceno com base na noção arendtiana de ação na natureza, assinalando a sua relação com a condição humana tal como descrita pela autora, quer no que respeita à vita activa, quer no que respeita à vita contemplativa, enfatizando o seu alcance ético e político-existencial, nomeadamente ao nível da responsabilidade para com as gerações futuras, entendida como preservação das condições ontológicas da capacidade de começar de novo.
2. Uma comparação da crítica dos valores em Arendt e Marcuse, nomeadamente a sua concretização numa crítica ao capitalismo e a relação deste último com a crise ecológica, articulando essa crítica com a relação entre sociedade e natureza no Antropoceno.
3. Uma exploração do poder transformador de mundo da arte e das obras de arte, compreendidas como repositórios de potenciais emancipatórios e de liberdade, nomeadamente por via de uma revolução estética.
4. Intimamente relacionada com o objetivo anterior, uma exploração da leitura arendtiana das revoluções e conselhos revolucionários, aprofundando o que ela entende como o tesouro perdido das revoluções, o seu alcance ontológico-político e a sua articulação com uma compreensão renovada do sentido das relações inter-humanas e das relações humanas com a Terra e com o mundo, fenomenologicamente entendidos.

Objetivos de Ensino:
O presente plano de trabalho divide-se em 3 objetivos gerais de ensino:
1. Participar nas atividades letivas do curso de graduação, de acordo com as necessidades do Departamento de Filosofia e com as demandas dos diferentes Departamentos da Universidade Federal de Pelotas com os quais o Departamento de Filosofia desenvolve e partilha atividades letivas. Exemplos não exaustivos e não limitativos de temas que o candidato à vaga poderia abordar em disciplinas a constituir ou já constituídas: ética ambiental, bioética, fenomenologia, filosofia política (contemporânea), ética, entre outros (ver item Conferências e Cursos a serem ministrados na área de concentração Ética e Filosofia Política).
2. Participar nas atividades letivas dos cursos de pós-graduação, de acordo com as orientações do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, oferecendo seminários temáticos ou de outro tipo, em língua portuguesa ou inglesa, apropriando temas, resultados e progressos pertinentes quer para o projeto de pesquisa proposto e seus objetivos, quer para projetos e linhas de pesquisa já em curso e cujos coordenadores estejam interessados na constituição de parcerias. Exemplos não exaustivos e não limitativos de temas que o candidato à vaga poderia abordar em seminários a constituir ou já constituídos: ética ambiental, bioética, fenomenologia, filosofia política (contemporânea), ética, entre outros (ver item Conferências e Cursos a serem ministrados na área de concentração Ética e Filosofia Política). O candidato disponibiliza-se a lecionar disciplinas em língua inglesa, se o Programa de Pós-Graduação considerar necessário e vantajoso para a realização do seu projeto de formação e pesquisa.
3. Orientar e coorientar trabalhos de pesquisa nos diferentes níveis de formação.

Objetivos de Extensão:
1. Organização de colóquios, mesas-redondas e rodas de conversa com alcance interdisciplinar subordinados à crise ecológica, aos seus impactos sociais e políticos, orientados não só para a comunidade acadêmica, mas também para as populações, comunidades e instituições no entorno da Universidade Federal de Pelotas.
2. Organização de curso de extensão de introdução à ética e política ambiental e à questão ecológica.
3. Constituição de um espaço de participação política centrado na universidade, mas com a possibilidade de deslocação à diferentes comunidades e instituições, à imagem da noção arendtiana de conselho revolucionário, compreendido como um espaço de debate público visando o esclarecimento mútuo dos participantes a partir da pluralidade de perspectivas constitutiva do tecido social e político de Pelotas.
4. Produção de materiais informativos sobre a crise ecológica – ebooks, flyers, etc. – resultantes dos diferentes eventos e debates, a serem distribuídos pela comunidade acadêmica e pelo público em geral.
5. Estabelecimento de parcerias com instituições de ensino superior e pesquisa nacionais e internacionais.

Justificativa

A indistinção entre natureza e sociedade é a marca do nosso tempo e uma das questões impulsionadoras subjacentes ao conceito de Antropoceno. Para Arendt, a indistinção é um sinal seguro de crise, compreendida como a interrupção de uma continuidade temporal que torna difuso tudo aquilo que antes parecia ser evidente por si mesmo e era tido como garantido. Uma crise tem lugar quando os valores ou critérios anteriormente usados para nos guiar nas dificuldades quotidianas deixam de ser fiáveis (Arendt 2006)⁠⁠. Contudo, isto não significa necessariamente que o caráter pouco fiável dos critérios passados para julgar novas condições implique uma interrupção no seu uso. Se entregues a si próprios e aos seus próprios dispositivos, estes valores ou critérios continuarão simplesmente a produzir e a reproduzir a indistinção – isto é, a crise – que está na sua base, assim aumentando o seu âmbito de atuação e a suas consequências (Arendt 2006)⁠. Isto é particularmente arriscado no quadro de uma crise ecológica que atingiu níveis ontológicos como a que atualmente vivemos.
O processo de humanização da natureza – de disposição da natureza como meio material para fins humanos – tem sido acompanhado pela naturalização da sociedade – pela transformação dos seres humanos em meios materiais para a sustentação contínua da produtividade socializada, em meios da produção e da reprodução dos fins do modo de vida socializado contemporâneo. De acordo com Arendt, isto ocorre devido à indistinção entre meios e fins, uma indistinção a que ela chama “a tragédia do homo faber” (Arendt 1959)⁠, isto é, a tragédia do Antropocentrismo.
Em A Condição Humana, Arendt afirma que as máquinas introduziram uma diferença significativa no processo de produção e na relação dos seres humanos com os instrumentos de produção. Embora o uso de ferramentas na manufatura tenha permitido uma clara distinção entre o produtor e as ferramentas usadas livremente como meios para a produção de um produto final particular – significando com isto que, embora os seres humanos produzissem representações de si próprios, estas não mudavam efetivamente a sua natureza de produtores –, as máquinas tiram vantagem da moção do trabalho do corpo e do seu ritmo para unificar os movimentos individuais, transformando a moção coordenada da própria máquina no sujeito de produção, em vez do indivíduo, e, concomitantemente, a produção num processo autônomo e infindo no qual a distinção entre meios e fins não é mais significativa.
Este é, na perspectiva de Arendt, um processo de naturalização, uma hibridização entre o processo auto-aparecente que caracteriza a existência de coisas naturais e o processo humano de fabricação, no qual a existência da coisa produzida é distinta do processo da sua fabricação. Citando Werner Heisenberg, Arendt dirá que o mundo das máquinas se tornou um substituto do mundo real, um mundo no qual a tecnologia aparece como o desenvolvimento biológico da humanidade, transplantando as estruturas do organismo humano para o ambiente (Arendt 1959)⁠⁠.
E aqui reside o aspecto trágico do Antropocentrismo, da compreensão moderna do anthropos. Na perspectiva de Arendt, todo o valor é uma relação entre coisas possuídas, isto é, valor dependente das regras socioeconômicas de oferta e procura. Isto significa que tudo pode ser transformado em mercadoria, assim perdendo a sua significância própria , a sua dignidade ou seu ser mais próprio. Consequentemente, o mundo moderno – o mundo construído sobre os preconceitos e pressupostos da era moderna – caracteriza-se pela perda da significância intrínseca das coisas – nada tem valor independentemente dos cálculos de oferta e procura – e pela relatividade universal – uma coisa só existe em relação a outras coisas, incluindo os próprios seres humanos, cuja significância como produtores é, primeiro, alienada como mercadoria – alienação de si – e, depois, como trabalhadores, é transformada em mera função do processo laboral, biológico da sociedade – alienação do mundo.
A tragédia do Antropocentrismo reside no facto de os seres humanos terem construído um mundo de fins em conformidade com os seus propósitos e para seu uso apenas para verificarem que todo o fim é apenas um meio numa cadeia sem fim, implicando que a humanidade, tal como é dada a si mesma e se compreende a si mesma no mundo que construiu para si, também se torna num meio para outra coisa, alienando o seu próprio mundo e perdendo assim a sua significância intrínseca. É precisamente quando tudo aquilo que é se submete a propósitos humanos, concretizando a recusa da doação da era moderna, que o mundo utilitário se torna absurdo para aqueles que o construíram. Parafraseando a crítica de Marcuse ao materialismo marxista na sua versão vulgarizada (Marcuse 1978)⁠, a reificação da natureza pelos seres humanos conduziu à reificação das suas próprias vidas individuais, subjetivas, transformando-as em meras funções de reprodução dos processos automáticos de uma ordem econômica preexistente. Embora a sociedade moderna pareça mais humana, o seu valor mais elevado é, na verdade, o funcionamento sem sobressaltos da máquina antropológica que transforma toda e qualquer coisa singular numa mercadoria efetiva ou potencial a ser trocada no mercado de trocas, incluindo o poder criativo e produtivo dos seres humanos.
Esta situação é irreversível e constitui a condição material da existência do mundo moderno. Contudo, isto não significa que não seja passível de transformação. De facto, esta é, nas palavras de Arendt, “[…] uma questão política de primeira ordem [...]” (Arendt 1959, 3)⁠. Esta questão marca, por um lado, o fracasso do projeto moderno de recusa de todo o dado e, mais importante, da própria doação, em nome da liberdade humana. Os seres humanos são caracterizados pelo facto da sua existência ser condicionada, mesmo pelas coisas feitas por si próprios. Para Marcuse, não pode haver abolição total da alienação (Marcuse 2001)⁠. A alteridade é constitutiva de tudo aquilo que é, e todo o ser humano luta com algum tipo de “natureza”. O sucesso total na dominação da natureza resultaria, paradoxalmente, na abolição do modo de ser propriamente humano. É justamente o facto de não sermos capazes de nos criarmos a partir do nada que está na base da nossa liberdade (Arendt 1994)⁠. Consequentemente, os esforços críticos devem ser dirigidos para a abolição daquilo a que Marcuse chama “mais-alienação” (Marcuse 2001, 197)⁠ ou excesso de alienação, a alienação produzida pelos processos autônomos, autossustentados da sociedade existente cuja crise está na base da desumanização, da repressão, da exploração e da destruição ambiental.
Por outro lado, mostra que o fracasso do Antropocentrismo não é necessariamente o mesmo que o fracasso do anthropos que está no centro do conceito de Antropoceno. Pelo contrário, parece apontar para o facto de apenas uma reconsideração crítica do anthropos – e nem uma simples renúncia do mesmo em nome de perspectivas biocêntricas ou similares, nem a sua reafirmação cega mesmo nos mais emancipatórios dos termos modernos – nos capacitará para descobrirmos uma saída da crise atual.
A questão que se coloca, então, é:

Como operar uma revolução de valores capaz de lidar com a capacidade da ação humana tal como descrita no conceito de Antropoceno e no “agir na natureza” arendtiano?

Responder a esta questão é o propósito deste projeto de pesquisa, explorando alguns aspectos das obras de Arendt e Marcuse, nomeadamente a noção arendtiana de ação na natureza e as suas implicações, a noção de revolução em ambos, a sua crítica dos valores e o modo como esta se vincula à estética e ao potencial emancipatório da arte.

Metodologia

Será privilegiada uma metodologia de base fenomenológica, por razões que se prendem às suas vantagens no que respeita ao projeto de pesquisa, ao processo formativo e ao seu potencial contributo para um enraizamento material do processo deliberativo e da consideração das diferentes perspectivas que nele se manifestam.
A autora que serve de principal referencial teórico ao projeto de pesquisa (Hannah Arendt) tem formação fenomenológica e adota uma variante do método fenomenológico nas suas análises e teses, pelo que a adoção de uma metodologia similar possibilita uma compreensão imanente dos textos e dos sentidos que eles contêm. A centralidade do fenômeno como unidade básica da fenomenologia confere à metodologia fenomenológica um potencial crítico, hermenêutico e reflexivo de fenômenos contemporâneos – como a crise ecológica – sem perder de vista as condições materiais dos fenômenos, da análise dos fenômenos e dos próprios sujeitos da análise, reduzindo a possibilidade de excessiva dominação teórica nos resultados da análise, procurando evidenciar as correlações presentes.
Nessa medida, a metodologia fenomenológica será aplicada de dois modos interligados:
1. Histórico-filosófico, a saber, como análise crítica e comparação de obras, temas e conceitos relevantes para o cumprimento dos objetivos do plano de trabalho.
2. Empírico, a saber, como análise crítica de dados provenientes de áreas disciplinares relevantes, bem como de fatos e acontecimentos, que possam contribuir para o cumprimento dos objetivos do plano de trabalho.
Por outro lado, todo o processo formativo deve contribuir não só para a qualificação de formandos e formadores numa área específica de formação, mas também para o desenvolvimento de uma atitude crítica relativamente à sociedade em que estão inseridos. A assimilação de conteúdos deve ser acompanhada de uma atitude de questionamento desses mesmos conteúdos, a qual deve valorizar e considerar a experiência e a perspectiva pessoal de todos aqueles envolvidos no processo formativo, contribuindo para a sua transformação como estudantes, pesquisadores, cidadãos e indivíduos.
A filosofia desempenha aqui um papel fundamental e a fenomenologia, se considerada como ramificação da prática filosófica, permite vincular a formação teórica com as perplexidades emergentes da vida quotidiana, contribuindo para a superação do déficit fenomenológico que afeta algumas análises filosóficas. Efetivamente, a fenomenologia parte da experiência antepredicativa, isto é, da experiência antes de se tornar objeto de reflexão filosófica. Regressar às coisas mesmas, aos fenómenos, é comprometer-se a ter sempre como referencial os acontecimentos, recusando metodicamente a neutralidade e o distanciamento com respeito ao quotidiano e a imposição de grelhas de compreensão já prontas.
Dado que a fenomenologia tem no seu núcleo a correlação entre um sujeito que, por via da significação, constitui o mundo objetivo, e um mundo objetivo que, aparecendo a um sujeito, se impõe como tema e condição última da sua reflexão crítica, não há nela lugar para a indiferença, nem mesmo para a indiferença contemplativa, uma vez que todo o questionamento do real implica concomitantemente uma inquirição voltada para o indivíduo e para a sua própria constituição como pessoa. A análise de textos clássicos da história da filosofia assume, assim, contornos mais vivos, transformando os autores e as obras do passado de doutrinas a serem contempladas e absorvidas passivamente – e cujo sentido para o atual contexto é, por vezes, difícil de captar – em interlocutores de um diálogo que atualiza as fórmulas passadas de modo a permitir que elas se expressem historicamente sob novas condições.
Do ponto de vista do processo deliberativo e num contexto marcado quotidianamente pela presença avassaladora da ciência e da tecnologia, a atitude dialógica e, de certo modo, dialética da prática fenomenológica permite ganhar competências pluri- e interdisciplinares, preservando assim o sentido histórico, ético, político e cultural que deve acompanhar toda a participação ativa na vida em sociedade. Por outro lado, permite também identificar os modos como o contexto e o indivíduo se constituem e se condicionam mutuamente, abrindo um espaço crítico para a transformação dos modos e estruturas de condicionamento e para a autonomia.
Trata-se, portanto, de uma proposta metodológica de base crítica apta a articular os diferentes saberes numa perspectiva de transformação social de acordo segundo a qual partimos da vida quotidiana e da multiplicidade das suas manifestações, para a ela regressarmos – docentes e discentes – num processo de transformação simultaneamente individual e coletiva.

Indicadores, Metas e Resultados

• 2 publicações publicações nacionais e/ou internacionais com arbitragem científica por ano (em inglês ou em português).
• Participação em congressos nacionais e/ou internacionais.
• 1 seminário de pós-graduação por semestre.
• 1 disciplina de graduação (individual ou compartilhada) por semestre.
• Organização de um evento subordinado aos temas do projeto de pesquisa por ano e publicação de uma obra coletiva (e-book) com os textos resultantes.
• Orientação de trabalhos de pesquisa nos diversos níveis de formação.
• Produção de uma obra autoral subordinada ao tema do projeto de pesquisa até final do projeto.

Equipe do Projeto

NomeCH SemanalData inicialData final
JEDERSON LUIS FERREIRA BORGES
NUNO MIGUEL PEREIRA CASTANHEIRA10
PATRICK DE LIMA FARIAS
Ramiro da Silva Duarte
STEFANIE GRUPPELLI KURZ

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