A Política Nacional de Medicamentos (PNM), estabelecida com o propósito de garantir a segurança, a eficácia, a qualidade dos medicamentos e a promoção do seu uso racional, bem como o acesso da população àqueles medicamentos considerados essenciais1 é apontado como instrumento orientador de todas as ações referentes a medicamentos no País.2 Segundo a Organização Mundial de Saúde, “o uso racional ocorre quando o paciente recebe o medicamento apropriado à sua necessidade clínica, na dose e posologia corretas, por um período de tempo adequado e ao menor custo para si e para a comunidade.”3
A assistência farmacêutica (AF) pode ser considerada como parte integrante das ações de um sistema de atenção à saúde, que busca pela promoção do uso racional de medicamentos na população que assiste.4 Dentre os princípios que orientam tal prática de atenção em saúde destaca-se a acessibilidade, coordenação do cuidado, continuidade, integralidade, humanização, equidade e a participação social.2
A garantia de acesso a medicamentos é considerada componente fundamental para a integralidade da assistência à saúde. Tal pressuposto se encontra descrito no Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de seu artigo 6º, que prevê no campo de atuação do SUS, dentre outras, a execução de ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, e a formulação da política de medicamentos.5
A execução do direito à saúde definido na Constituição Federal, determina o cumprimento das políticas públicas existentes, formuladas e implementadas considerando-se os princípios e diretrizes do SUS, critérios técnicos e disponibilidade de recursos. Contudo, o deferimento das demandas judiciais como no caso de medicamentos é considerado um desvio na porta de entrada do SUS, pois apesar de se apoiar em tal direito, desconsidera as políticas públicas relacionadas ao assunto, como a de Assistência Farmacêutica. O atendimento a essas demandas obriga o fornecimento independente dos processos de seleção, programação, aquisição, armazenamento, distribuição e dispensação desenvolvidos no intuito de garantir segurança, eficácia e custo-efetividade do tratamento ofertado à população.6,7
Assim, se por um lado existem as garantias constitucionais relacionadas à integralidade da assistência no âmbito do SUS, por outro, há fragilidades no financiamento da assistência farmacêutica que denotam as inúmeras necessidades assistenciais que clamam por um atendimento que seja eficaz e satisfatório.8
Neste contexto, a preocupação com o uso racional de medicamentos passa a ter um importante papel na questão da judicialização da saúde, pois quando utilizado de maneira inadequada o medicamento também pode se constituir em fator de risco para a saúde das pessoas que o consomem.9 Deste modo, o foco dos gestores não deve ser a promoção do acesso a qualquer medicamento para todas as pessoas, mas sim, a promoção do seu uso racional e seguro, buscando estratégias que assegurem a oferta adequada de medicamentos em termos de quantidade, qualidade e eficácia.10
No entanto, a interpretação do cumprimento dos princípios do SUS, tais como o da universalidade e da integralidade tem sido utilizada no sentido de justificar as ações judiciais para o fornecimento de medicamentos desconsiderando-se as listas que integram os Componentes da Assistência Farmacêutica.10
Segundo Peppe et al., 201011, os problemas de gestão da Assistência Farmacêutica (AF) relacionados à judicialização da saúde não se restringem à entrega de medicamentos incorporados ou não às listas oficiais públicas. Há aspectos desta demanda, que vem exigindo um tipo de atuação do gestor, administrativa e judicial, diferenciada para responder às ordens judiciais, evitar o crescimento de novas demandas e preservar os princípios e as diretrizes do SUS. Tal demanda teve seu início marcado na década de noventa, por meio dos pedidos de medicamentos antirretrovirais para o VIH/SIDA, o qual tem tido importante papel como via alternativa do cidadão ao acesso a medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS).11
No que concerne aos efeitos negativos do fenômeno da judicialização da saúde, a literatura sustenta suas ponderações sobre diferentes aspectos. O primeiro sugere que o deferimento absoluto de pedidos judiciais pode aprofundar as iniquidades de acesso no sistema público de saúde, infringindo princípio do SUS, uma vez que favorece aqueles que têm maior possibilidade de veicular sua demanda judicialmente, apontando para o possível comprometimento do princípio da integralidade, uma vez que ações de cunho individual não são estendidas aos demais portadores da mesma condição patológica que poderiam se beneficiar do objeto da demanda. O segundo refere-se às dificuldades na gestão da AF não previstas no planejamento dos serviços, motivando a criação de uma estrutura “paralela” para seu acompanhamento, de modo a se utilizar de procedimentos de compra não usuais na administração pública com geração de maior gasto na aquisição destes medicamentos.6,7,11. De acordo com Vieira & Zucchi, 20077, as solicitações, pela via judicial, de medicamentos incorporados aos programas do SUS reforçam as deficiências na gestão das políticas farmacêuticas e vem sendo alvo de intenso debate com destaque no Supremo Tribunal Federal (STF). Outro aspecto que sustenta os efeitos deletérios da judicialização da saúde encontra-se relacionado aos riscos tangentes a segurança do paciente; o que é ocasionado por possíveis prescrições inadequadas, em especial, na prescrição de novas indicações terapêuticas para as quais as evidências científicas ainda não se encontram bem documentadas. É importante destacar que parte dos medicamentos “novos” podem representar eventos adversos inesperados, ao contrário de um possível ganho em benefícios terapêuticos; o que pode impactar em riscos à saúde.6,7,11
A “judicialização da saúde”, fenômeno multifatorial, expõe limites e possibilidades institucionais estatais e instiga a produção de respostas efetivas pelos agentes públicos, do setor da saúde e do sistema de justiça. Além dos aspectos supramencionados, tal multifatoriedade vem ancorada também no maior acesso à informação e, portanto maior exigência por tecnologias em saúde pelo usuário, assim como nas mudanças epidemiológicas advindas da inversão da pirâmide populacional, e da ocorrência de doenças emergentes concomitantes com as já existentes.11
De acordo com Vieira & Zucchi 20077, a judicialização rompe com o conceito de racionalização do uso de medicamentos no País, estabelecido pela Política Nacional de Medicamentos e pelas diretrizes do SUS.8 O atendimento e deferimento de solicitações de medicamentos por via judicial, além de contradizer os princípios do Sistema, gera preocupação quanto ao fornecimento de medicamentos com qualidade que pode comprometer a efetividade do tratamento e levar à utilização inadequada dos medicamentos.12
A garantia do acesso a medicamentos é considerada, portanto, um dos desafios para a efetiva consolidação dos princípios do SUS, dentre eles o processo de judicialização da saúde, que motiva discussões nos Poderes Executivo e Judiciário.10 Se por um lado, tal fenômeno ocorre devido à busca por acesso adequado às necessidades individuais de cada paciente em meio ao desenvolvimento organizativo e operacional ainda insuficiente no SUS6,7, por outro lado, compromete a qualidade do fornecimento e uso racional dos medicamentos e a utilização dos recursos disponíveis de forma eficiente.8
Diante do exposto, fica evidente que a união de esforços e competências entre o âmbito da assistência farmacêutica e o sistema judiciário exerce papel fundamental na promoção do uso racional dos medicamentos com consequente otimização dos recursos disponíveis. A assistência farmacêutica aqui representada por uma assessoria técnico-científica e de caráter consultivo por parte da academia, (Curso de Farmácia da UFPel), e o sistema de apoio jurídico, representado pela Defensoria Pública da União, seccional de Pelotas/RS. Por meio de tal parceria busca-se alcançar melhorias sobre os resultados em saúde, além de diminuir, através de sua qualificação, o processo de judicialização no SUS, equacionando de modo satisfatório aqueles já encaminhados.
Assim, o presente projeto pretende, além de objetivar os benefícios acima mencionados, visa igualmente possibilitar a abertura para novos campos de prática para realização de atividades acadêmicas atendendo assim as diretrizes dos cursos de Farmácia definidos pelo Ministério da Educação que primam pela formação do farmacêutico generalista em todos os níveis de atenção em saúde e de modo integrado às políticas de saúde.