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A família Calliphoridae (Insecta: Diptera), popularmente conhecida como moscas varejeiras, reúne cerca de 1.500 espécies distribuídas em aproximadamente 150 gêneros, ocorrendo em praticamente todos os continentes (ROGNES, 1991; PAPE et al., 2011). Na região Neotropical, essa diversidade é especialmente expressiva, refletindo a grande variedade de ecossistemas e pressões ambientais. No Brasil, mais de 70 espécies já foram registradas (CARVALHO; MELLO-PATIU, 2008), o que evidencia a ampla capacidade adaptativa dessas moscas e sua relevância para estudos ecológicos, sanitários e forenses. O bioma Pampa, que ocupa 63% do território do Rio Grande do Sul (IBGE, 2004) e se estende pelo Uruguai e parte da Argentina (ANDRADE et al., 2018), destaca-se pela predominância de sistemas de pecuária extensiva (OVERBECK et al., 2022). Essa configuração produtiva torna o ambiente especialmente favorável para Calliphoridae, pois a abundância de matéria orgânica em decomposição, como carcaças e fezes, fornece recursos essenciais para a oviposição e o desenvolvimento larval (GOMES et al., 2000; CORRÊA et al., 2010; KOLLER et al., 2011). A própria heterogeneidade ambiental do bioma, que combina campos nativos, áreas florestadas e ambientes urbanos ou periurbanos, cria um mosaico de nichos ecológicos que favorece a manutenção de uma fauna diversa. Apesar disso, embora alguns estudos já tenham contribuído para o conhecimento regional (VIANNA et al., 2004; SOUZA et al., 2008; KRUGER et al., 2010; ZAFALON-SILVA et al., 2014), a distribuição espacial e a abundância relativa das espécies permanecem pouco documentadas, reforçando a necessidade de investigações mais amplas. Esses dípteros desempenham papéis ecológicos fundamentais, tanto como decompositores quanto como parasitas facultativos ou obrigatórios. Suas larvas alimentam-se de substratos ricos em matéria orgânica em decomposição, enquanto os adultos visitam carcaças, fezes, secreções e alimentos, contribuindo para a ciclagem de nutrientes e, em alguns casos, para processos de polinização (WALL; SHEARER, 1997; ZUMPT, 1965). Entretanto, essa mesma ecologia favorece sua associação com ambientes insalubres, possibilitando o transporte de microrganismos patogênicos de interesse veterinário e humano. Espécies como Cochliomyia hominivorax podem causar miíase traumática em vertebrados, gerando prejuízos significativos à pecuária (FRESIA et al., 2021). Além disso, adultos de Lucilia sericata já foram implicados na transmissão de Staphylococcus aureus resistente a antibióticos (HAGHI et al., 2018), enquanto representantes de Chrysomya podem atuar como vetores mecânicos de agentes como Escherichia coli e Salmonella spp. (RUSSELL et al., 2018). Embora haja crescente evidência da associação entre Calliphoridae e a disseminação de patógenos (BERTOLINI et al., 2023), o papel exato desses dípteros na epidemiologia de doenças em sistemas pecuários do Pampa ainda é pouco compreendido. O Pampa gaúcho concentra grande parte do rebanho bovino do estado (IBGE, 2022), o que potencializa o risco de transmissão mecânica de microrganismos entre animais e entre ambientes rurais e urbanos. Nesse cenário, compreender a diversidade de espécies, sua dominância ecológica e os patógenos que transportam é fundamental para subsidiar estratégias de vigilância sanitária, manejo e prevenção de doenças. A integração entre dados ecológicos, taxonômicos e moleculares representa, portanto, uma abordagem necessária para preencher lacunas de conhecimento e fortalecer ações de biossegurança na região.

O projeto será desenvolvido em quatro fases articuladas: (i) revisão sistemática; (ii) identificação morfológica de amostras do Uruguai; (iii) comparação entre dados históricos e novas coletas no Pampa brasileiro, uruguaio e argentino; e (iv) detecção molecular de patógenos associados a Calliphoridae.

Fase I – Revisão sistemática

Será conduzida uma revisão sistemática da literatura para sintetizar os patógenos associados às moscas da família Calliphoridae e suas implicações sanitárias. A busca seguirá as diretrizes PRISMA, utilizando as bases Google Scholar, Scopus, Web of Science, SciELO e PubMed. Serão incluídos estudos revisados por pares, teses, dissertações e livros publicados em português, inglês ou espanhol, que abordem relações entre Calliphoridae (especialmente Lucilia e Chrysomya) e agentes bacterianos, virais ou parasitários. A triagem ocorrerá por leitura de título, resumo e texto completo. Os estudos selecionados serão organizados em planilha contendo espécie, localidade, patógeno, método e impacto à saúde animal. A síntese será qualitativa e servirá de base para as etapas morfológicas e moleculares do projeto.

Fase II – Identificação das amostras uruguaias

As coletas ocorrerão em áreas pecuárias de Tacuarembó e Colonia del Sacramento, utilizando armadilhas modificadas iscadas com fígado bovino (Hwang & Turner, 2005). Cada armadilha terá entrada lateral, garrafas coletoras acopladas e substrato de solo para retenção de umidade. As amostras serão divididas em porções para identificação morfológica e análises moleculares. A identificação taxonômica será realizada sob estereomicroscópio com base em chaves específicas (Whitworth, 2006; Dear, 1985; Carvalho & Ribeiro, 2000). A comparação entre ambientes será realizada por métricas de dissimilaridade (Bray-Curtis e Jaccard), após verificação de normalidade.

Fase III – Comparação com dados históricos e novas coletas no Pampa

Será efetuada uma revisão integrativa de registros históricos do Pampa brasileiro, uruguaio e argentino, reunindo informações de literatura científica e repositórios biológicos (GBIF, SpeciesLink, SiBBr). Apenas registros com identificação validada e localizados dentro do bioma serão incorporados. As novas coletas ocorrerão no Horto Botânico Irmão Teodoro Luís, utilizando três réplicas compostas por armadilhas instaladas em micro-hábitats contrastantes: interior da mata (sombreamento e maior umidade) e área aberta próxima à pecuária (alta exposição solar e matéria orgânica). Após identificação taxonômica, os dados serão harmonizados quanto à nomenclatura e escala espacial, possibilitando análises comparativas de riqueza, composição e dominância ao longo do tempo. Os resultados integrarão fatores ambientais e antrópicos que afetam a ocorrência de Calliphoridae no Pampa.

Fase IV – Identificação molecular de patógenos

As análises moleculares serão realizadas a partir de pools de cinco a dez moscas da mesma espécie e localidade, previamente identificadas morfologicamente. A extração de DNA será realizada nos laboratórios da Plataforma de Saúde Animal do INIA, seguindo protocolos validados para insetos vetores. O rastreio de patógenos será conduzido por PCR ou qPCR, empregando primers específicos para microrganismos de relevância pecuária (por exemplo, Salmonella spp. e Pseudomonas spp.). Amostras positivas serão submetidas a qPCR para quantificação e ao sequenciamento para confirmação por BLAST. Os resultados serão integrados aos dados morfológicos e espaciais, permitindo avaliar padrões de ocorrência e indicar o potencial epidemiológico das espécies analisadas.

O projeto estabelecerá metas voltadas ao avanço do conhecimento sobre a fauna de Calliphoridae no Pampa e à aplicação prática desses resultados na melhoria da sanidade animal. Os dados gerados serão fundamentais para aprimorar programas de erradicação de insetos de importância médico-veterinária, fortalecer iniciativas de controle biológico e diminuir a dependência de produtos químicos, contribuindo diretamente para a sustentabilidade e a competitividade da pecuária e da leiteria no Uruguai e no Brasil. Entre as metas centrais, destaca-se o aprofundamento do conhecimento sobre a diversidade e a abundância de moscas da família Calliphoridae nas diferentes regiões estudadas. Um dos principais resultados esperados é a comparação detalhada da composição da fauna entre localidades do Uruguai e do Rio Grande do Sul, permitindo avaliar de que forma os sistemas de produção, especialmente a pecuária de leite, influenciam a presença e a distribuição das espécies. Espera-se identificar quais espécies se mostram mais prevalentes em cada tipo de ambiente, fornecendo subsídios para o desenvolvimento de estratégias de manejo ajustadas às condições regionais. Outra meta relevante consiste em identificar, com precisão, as espécies que atuam como vetores de patógenos de importância sanitária, quantificando sua abundância e distribuição em cada localidade. Os resultados previstos incluem a geração de evidências que auxiliem na compreensão do papel epidemiológico das espécies mais associadas à transmissão de agentes infecciosos, permitindo delinear medidas mais assertivas de prevenção e controle. Do ponto de vista aplicável, o projeto deverá resultar na produção de artigos científicos de impacto, na elaboração de guias ilustrados destinados a produtores e técnicos, e na consolidação de uma base de dados entomológica robusta, capaz de servir como referência para futuras pesquisas e para a formulação de programas de manejo integrado. A longo prazo, espera-se que os avanços obtidos contribuam para a melhoria da saúde animal, a redução de perdas econômicas relacionadas à transmissão de patógenos por moscas e o fortalecimento da pecuária em toda a região do Pampa.