Do ponto de vista metodológico, trata-se de um estudo de caso com várias observações (Gerring, 2006), que se diferencia dos estudos com grande número de casos por explorar em profundidade e intensidade as evidências empíricas de um único caso. A seleção dessas evidências depende do objetivo que guia a pesquisadora (Ragin e Becker, 1992). Neste projeto, o norte foi dado pela questão empírica, buscando apreender a atuação de movimentos sociais progressistas nas janelas de oportunidades ou de ameaças relativas às pautas tributárias redistributivas. Nesse sentido, torna-se aconselhável dividir o estudo de caso, como o sugere Gerring (2006), em unidades menores, conformando um desenho do estudo de caso organizado e composto por “observações”, que são unidades metodológicas de análise nas quais as questões de pesquisa se repõem com uma variação espacial ou temporal (Gerring, 2006: 49). Assim, o estudo terá como observações três períodos distintos, todos permeados pela reformulação das questões tributárias.
No que se refere à seleção dos movimentos sociais, dois critérios serão aplicados: o de homogeneidade do universo de casos e o de heterogeneidade no interior desse universo (Berg-Schlosser, 2012, p. 42). A homogeneidade consiste em selecionar os casos que sejam comparáveis: nesta pesquisa trata-se de movimentos sociais progressistas com atuação em episódios de políticas públicas, no período pós-redemocratização e de construção de novas políticas de direitos. Também caracterizam a similaridade desses movimentos sociais suas trajetórias ao longo de um continuum temporal de mais de duas décadas, com padrões de ação coletiva que vão da contestação ao engajamento institucional no Estado. No que se refere ao critério de heterogeneidade no interior do universo de casos, introduzimos movimentos sociais correlatos a dois diferentes tipos de políticas públicas: políticas diretamente redistributivas (terra, geração de trabalho e renda e moradia) e as de direitos de minorias. Em termos de resultados também é esperada uma variação no que se refere ao seu posicionamento e organização frente aos momentos de oportunidades e/ou restrições políticas que constituem desencadeadores de mobilizações.
O conceito de oportunidades rege a escolha dos três períodos de análise. Aplicando o conceito aos momentos históricos, foi possível selecionar os seguintes períodos em que as questões relativas à taxa de juros e imposto progressivo ou taxação de grandes fortunas estavam na agenda.
Seleção dos períodos de oportunidades e ameaças políticas
Foram presselecionados três momentos em que as questões tributárias se apresentaram como possíveis oportunidades/ameças políticas. A trajetória institucional dessas decisões será reconstruída a partir da revisão da literatura antes da pesquisa junto aos movimentos.
1) Retirada do inciso 3o do art. 192 da Constituição Federal de 1988, que limitava a cobrança de juros a 12% por ano - agosto de 1999 a maio de 2003 (2o governo de FHC e o início do 1o governo de Lula)
Durante o governo de Lula, em 29 de maio de 2003, foi aprovada, por meio da emenda constitucional n. 40, a retirada do §3 do art. 192 da Constituição Federal de 1988, que limitava a cobrança de juros a 12% por ano. A aplicabildade deste item fora condicionada à regulamentação, o que não aconteceu aos longo dos anos 1990 (Laurindo e Heinen, 2021). A Emenda Constitucional n. 40 se baseou num Projeto de Emenda Constitucional n. 53 apresentada pelo senador José Serra em 11 de agosto de 1999, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. A EC retirou a regulamentação pelo Estado no que se refere à taxa de juros entre as pessoas físicas e jurídicas e o sistema bancário.
2) Redução das taxas de juros - maio de 2011 a abril 2013 (2o governo da presidente Dilma)
A presidenta Dilma iniciou, em 1 de maio de 2011, uma política de redução de juros. Entre aquela data e 18 de abril de 2013, quando o Banco Central iniciou o ciclo de aumento de juros, o Brasil passou a ter níveis de juros considerados baixos, compatíveis com os praticados nos centros capitalistas avançados. Esses avanços incluíram a redução de juros para as pessoas físicas em 2012 (Singer, 2015).
3) Proposta da Reforma Tributária - abril de 2023 ao final da tramitação (3o governo de Lula)
No novo governo Lula, seu ministro Fernando Haddad apresentou, ainda no primeiro semestre de 2023, uma proposta de reforma tributária ao redor da qual reapareceu a demanda da taxação de grandes fortunas.
Seleção de movimentos
Os movimentos serão organizados em dois grupos: 1) Grupo das pautas redistributivas como Movimento dos Sem Terra, Movimento dos Trabalhadores sem Teto, Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e Movimento de Economia Solidária 2) Grupo de políticas de minorias como Movimento Feminista, Movimento de Assistência Social, Movimento de Educação Infantil e Movimento o Ambiental. A escolha da grande parte desses movimentos (6 dos 8) também se deve à expertise da equipe que se predispôs integrar esse projeto de pesquisa (ver item “Equipe”, abaixo). Os dois não cobertos pela equipe são bastante estudados pelo campo de estudos de movimentos sociais, o que permite o aproveitamento dessas pesquisas para o presente estudo.
Cada qual desses movimentos será analisado em termos de enquadramentos interpretativos e repertório organizacional ao longo dos 3 períodos selecionados.
Coleta e análise dos enquadramentos: quais foram os enquadramentos interpretativos construídos em torno das questões tributárias em termos de diagnóstico e prognóstico. Material de coleta: documentos e postagens produzidos pelas organizações mobilizadas de cada movimento nos períodos selecionados. Para a análise de conteúdo será utilizado no NVivo versão Pro 12 que permite processo de codificação do extenso material empírico em categorias de análise (método de análise usado na minha pesquisa anterior em parceria com Euzeneia Carlos e Maria do Carmo Albuquerque; Chamada Universal – MCTI/CNPq Nº 14/2014)
Coleta e análise do repertório organizacional: quais foram estruturas organizacionais mobilizadas para o engajamento. Material de coleta: documentos produzidos pelos movimentos, material de mídia e entrevistas com ativistas. Os dados sobre as formas de organização serão analisados com a ajuda do aplicativo do Graph Commons que permite a sistematização e visualização das relações entre atores. Essa análise de rede será usada para identificar os clusters e conexões entre os membros (Osa, 2003).
Este desenho metodológico permitirá as seguintes análises:
Força dos argumentos: Comparação longitudinal dos enquadramentos entre dois conjuntos de movimentos ao longo de 20 anos, iluminando o lugar que as questões tributárias no que se refere aos impostos progressivos, taxa de juros e taxação de grandes fortunas ocupam na agenda desses movimentos. As mudanças e permanência poderão iluminar as questões da centralidade dos mecanismos da reprodução das desigualdades no Brasil.
Combate organizado?: Análise das formas de organização dos movimentos, iluminando o grau de mobilização e organização dos movimentos em janelas de oportunidade e ameaça.
Contexto: análise da mídia e levantamento de surveys de opinião pública
Em cada uma dos três momentos selecionados, a pesquisa recorrerá aos surveys de opinião pública em que as questões da taxa de juros, taxação de grandes fortunas e impostos progressivos foram avaliados pela população. Aqui, serão aproveitadas as escolhas metodológicas de Arretche e Araujo (2017) que usaram diferentes fontes de dados para entender o conservadorismo econômico, mais especificamente as opiniões dos cidadãos e cidadãs brasileiros sobre a intervenção social do Estado para reduzir desigualdades econômicas. A cobertura da imprensa será realizada junto a dois jornais de circulação nacional, restringindo-se às matérias das capas (Fernandes, Pereira e Silva, 2022; Carvalho et al., 2022).