Nome do Projeto
A parentalidade como forma de governança reprodutiva nas práticas de apoio à convivência familiar e comunitária em Pelotas
Ênfase
Pesquisa
Data inicial - Data final
29/09/2025 - 29/12/2028
Unidade de Origem
Coordenador Atual
Área CNPq
Ciências Humanas
Resumo
O projeto de pesquisa objetiva analisar o exercício da parentalidade enquanto forma de governança reprodutiva nas práticas de apoio à convivência familiar e comunitária em Pelotas. Tal problemática se insere em um conjunto de temáticas que conforma a Rede Internacional de Pesquisa sobre Família e Parentesco - Rede Anthera. A Rede Anthera é coordenada pela professora Claudia Fonseca (UFRGS) e por mim e congrega mais de 40 pesquisadoras/es brasileiras/os e estrangeiras/os. Para além da defesa de uma posição no binômio acolhimento/adoção, a teia argumentativa nos interroga sobre as práticas voltadas ao acompanhamento das famílias, sobretudo as que têm filhos em acolhimento institucional ou em processo de destituição do poder familiar, nas políticas assistenciais e de proteção. Trata-se de problematizar a presença dessas famílias nesse campo que é conformado por um conjunto de cruzamentos legislativos, biomédicos e morais, em particular em um contexto de grandes tensões em torno do exercício da parentalidade como forma da governança reprodutiva. A problemática do projeto é baseada em uma trama teórica que envolve principalmente os conceitos de governança reprodutiva e parentalidade. A reprodução está pensada para além dos sentidos e lugares mais evidentes, tais como gerar e criar filhos. Dessa forma, o trabalho reprodutivo não é somente crucial para as famílias, mas para a política. E, portanto, toda política é também política reprodutiva. Esse eixo teórico principal será pensado a partir de temáticas específicas como a “psicologização do social”, o governo pela palavra e o tempo do parentesco. Para tanto, será realizada uma pesquisa etnográfica na cidade de Pelotas, junto aos profissionais que atuam no Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI). A observação participante se concentrará nos atendimentos individuais e familiares, nas visitas domiciliares e reuniões de articulação da rede. Em uma etapa sistemática da pesquisa, serão realizadas as entrevistas em profundidade com as profissionais.

Objetivo Geral

Objetivo Geral:
Analisar a fabricação da parentalidade, como forma de governança reprodutiva, nas práticas de apoio à convivência familiar e comunitária em Pelotas-RS.

Objetivos específicos:
- Mapear legislação e políticas públicas voltadas à manutenção dos vínculos familiares e comunitários no Brasil.
- Identificar e problematizar como saberes especializados acerca das concepções de família e parentalidade são evocados pelos profissionais que atuam no PAEFI (Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos) e no PIM (Programa Primeira Infância Melhor), em Peloras-RS.
- Descrever e caracterizar as práticas e procedimentos dos agentes institucionais voltados à parentela extensa;
- Descrever e caracterizar o trabalho de articulação em rede entre as assistências básica e especial e também com outras instâncias/instituições (saúde, escola, acesso a benefícios, etc).
- Identificar as redes e fluxos de atendimento às famílias em Pelotas.

Justificativa

A temática da convivência familiar e comunitária, sobretudo no que se refere ao investimento por parte dos profissionais no campo da proteção à infância e à adolescência no Brasil, tem se constituído como uma das grandes promessas do Estatuto da Criança do e do Adolescente (ECA) desde a sua implementação nos anos 1990 (BRASIL, 1990). Em sintonia e reforçando o que já estava previsto na Constituição Federal (art.226), no próprio ECA, e na Lei Orgânica de Assistência Social (BRASIL, 1993), em 2006, foi aprovado o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC). Tendo em vista “a clara decisão do Governo Federal” de dar prioridade à temática da convivência familiar, o PNCF tem como objetivo a “formulação e implementação de políticas públicas que assegurem a garantia dos direitos das crianças e adolescentes, de forma integrada e articulada com os demais programas de governo” (BRASIL, 2006). Em função dessa “convivência” é que a medida de acolhimento institucional (abrigos, casas-lares) deveria se constituir como uma excepcionalidade e o tempo de permanência de crianças e adolescentes em tais serviços não deveria ultrapassar dois anos. Nesse contexto, as adoções também se colocavam como último recurso, sendo acionadas somente em casos que havia se esgotado toda e qualquer possibilidade de retorno da criança para família biológica e/ou família extensa.
Entretanto, mesmo diante de avanços em termos legislativos e também das práticas dos operadores do campo da proteção à infância e à adolescência, a realidade de famílias com crianças e adolescentes em acolhimento institucional permanece com pouca ou quase nenhuma visibilidade tanto no que se refere ao judiciário, como à própria mídia.
O Levantamento Nacional sobre os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes em tempos de Covid-19, publicado em 2020, evidenciou a urgência do investimento nas famílias, de forma a “não as julgar e criminalizá-las pela situação estrutural de pauperismo que as coloca em situação de maior vulnerabilidade social e com maior probabilidade de situação de risco” (BERNARDI, 2020). E chamou atenção que, justamente no contexto de exceção posto pela pandemia, houve um favorecimento da reintegração familiar, com agilização da saída de acolhidos. Se durante a pandemia o retorno à família era uma possibilidade, porque essa não foi trabalhada anteriormente? Nesse mesmo contexto, a pesquisa revelou a busca de outras alternativas ao acolhimento, dentre as quais, ressalto aqui, o apoio pela família extensa e pela vizinhança na comunidade. Tais alternativas, no Brasil, são historicamente incontornáveis nas dinâmicas de sociabilidade, como tem mostrado os trabalhos de Fonseca (2019, 2006b, 2002, 2000) junto às classes populares, em particular, no que se refere à prática de circulação de crianças e a rede de cuidados e apoios que esta enseja.
Entretanto, ainda que pesem tais constatações sobre as famílias em situação de vulnerabilidade, a pobreza permanece sendo traduzida pela “negligência familiar”, que ocupa o primeiro lugar (525 casos – 30,7% do total) no ranking dos motivos de ingresso de crianças e adolescentes nos serviços de acolhimento institucional (BERNARDI, 2020). Conforme os artigos 5 e 23 do ECA, a “falta ou carência de recursos materiais não se constitui como motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar”, mas a “negligência” é inadmissível nos termos da lei, de maneira que: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência” (BRASIL, 1999). Difícil caracterizar a negligência e, sobretudo, identificar os seus contornos quando estes dependem das concepções de família e de cuidados.
Esse breve panorama das ambivalências que atravessam o campo da proteção à infância e adolescência no Brasil certamente aponta para avanços (em termos legislativos e das práticas dos seus operadores) e nos indica que não há uma solução única, tampouco consensual, em termos das respostas aos desafios postos. Mas também revela que direitos, como lembra Fonseca (2021, 2019), que foram adquiridos, sobretudo a partir de um intenso trabalho por parte de ativistas, parecem ser testados e sua continuidade posta em xeque. No lugar da “promessa da convivência familiar”, assistimos a emergência da adoção como a solução mais cotada para fazer face à equação acolhimento institucional, desinstitucionalização, convivência familiar.
A partir de 2010, é possível observar fortes indícios do que Fonseca (2019) tem chamado de “um interesse renovado” pela adoção decorrente em parte do desinvestimento em termos de políticas públicas no apoio às famílias em situação de vulnerabilidade e do reconhecimento por parte dos operadores de que a “reintegração familiar era um ideal difícil de realizar”. A culpabilização e/ou responsabilização pela não proteção por parte das famílias biológicas tem se tornado também base para projetos de lei que visam alterar o ECA “em relação à convivência familiar, com ênfase na adoção e na destituição do poder familiar” (FÁVERO, 2018, p.59; FONSECA, 2021, 2019).
Nesse cenário, as adoções emergem como a solução, mais barata e menos complicada, para “desafogar abrigos lotados”, como resposta à problemática dos egressos de serviços de acolhimento, e também, porque não dizer, como uma resposta à queda do número de adoções internacionais, a partir de meados dos anos 2000.
Na esteira dessas transformações, assiste-se a um processo de “ressignificação do direito à convivência familiar e comunitária” que implica em investir “menos na manutenção de vínculos na família e bairro originais” e cada vez mais nos “benefícios proporcionados por uma família adotiva” (FONSECA, 2019, p.24).
O panorama descrito acima permite caracterizar o contexto em que se situa a problemática da pesquisa. As pistas reunidas, até esse momento, permitem delimitar a questão-problema do presente projeto: Como a “parentalidade”, enquanto forma de governança reprodutiva, é fabricada nas práticas de apoio à convivência familiar e comunitária em Pelotas-RS?

Metodologia

O presente projeto tem como base a realização de uma pesquisa etnográfica que privilegie os relatos das experiências dos sujeitos e, portanto, o potencial de transformação que estas carregam. A etnografia aqui está sendo entendida como um movimento epistemológico que transcende o trabalho de campo e possibilita a compreensão da “análise antropológica como forma de conhecimento”. Neste sentido, é possível pensar que a etnografia, no sentido de inventividade, cria objetos (WAGNER, 2010). Permite criar porque está intimamente ligada a um estoque de conhecimentos que circula no – e conforma o – campo da Antropologia, e tal “reserva de saberes” é produto da ligação entre a história da Antropologia e as teorias antropológicas (SÁEZ, 2009).
Seguindo tal premissa, seria possível pensar, em diálogo com Goldman (2006), que a natureza mesma da perspectiva antropológica estaria na produção de teorias etnográficas, as quais não se confundem nem com as teorias nativas (que seriam cheias de vida e ligadas às vicissitudes cotidianas) e nem com as teorias científicas (as quais transcendem a realidade). As teorias etnográficas estariam no ponto mediano entre essas teorias. E ainda que estas passem necessariamente pela observação participante, nem toda observação participante se constituirá enquanto teoria etnográfica. Como lembra Ingold (2017), a observação participante é fundamental para a prática da antropologia, sobretudo pela sua abordagem no ato de participar e responder – um modo de corresponder com as pessoas – mas a observação participante e a etnografia não são a mesma coisa. “É claro que, como todo esforço artesanal, a etnografia tem os seus métodos – as suas regras de procedimento, os seus modos de trabalhar – mas não é um método” (INGOLD, 2017, p.225).
Nesse sentido, retomando a perspectiva das teorias etnográficas, fica claro que estas são muito mais complexas, pois envolvem questões epistemológicas, políticas, éticas e são necessariamente comparativas. Em diálogo com Goldman (2006) é possível pensar que as teorias etnográficas possibilitam a elaboração de modos de compreensão de um objeto social qualquer que, mesmo produzido em e para um contexto particular, possa funcionar como matriz de inteligibilidade em e para outros contextos.
Em termos de uma posição mais crítica acerca da etnografia e da própria Antropologia, é importante lembrar que o presente projeto de pesquisa se alinha à proposta de Roy Wagner (2010) acerca das implicações da relatividade, sobretudo no que diz respeito ao esforço para combater uma tendência presente na Antropologia para “racionalizar a contradição, o paradoxo e a dialética, e não para delinear e discernir suas implicações” (WAGNER, 2010, p,10).
Seguindo tais premissas, e tendo em vista a problemática proposta, a pesquisa está organizada em quatro etapas:

1) Atividades Preparatórias e de Coordenação Rede Anthera
- Realização de reuniões com as equipes regionais da Rede Anthera;
-Reuniões de trocas das equipes Rede Anthera em âmbito nacional e internacional;
- Atividades de expansão da rede Anthera;
- Participação, por vídeo, dos seminários do Laboratoire Interdisciplinaire Solidarités, Societés, Territores (LISST), da Université Toulouse Jean Jaurés. Mesmo após o período de pós-doutorado na França, permanecerei ligada ao LISST.
- Organização de tópicos e/ou disciplinas sobre governança reprodutiva e parentalidades no PPGAS/UFRGS com a participação de pesquisadoras/es que integram o projeto em âmbito nacional e internacional;
-Mapeamento e sistematização da legislação e das políticas sobre convivência familiar e comunitária no Brasil;
-Pesquisa bibliográfica sobre governança reprodutiva, em particular sobre parentalidades;
- Contato com as instituições nas quais serão realizadas as atividades de campo;
- Solicitação de acesso aos dossiês das crianças/adolescentes cuja família é atendida no PAEFI (CREAS).


2) Atividades de Campo

A pesquisa de campo será desenvolvida na cidade de Pelotas, junto aos profissionais que atuam na rede básica (CRAS), no Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e, na rede especial (CREAS), no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI). Como já mencionado anteriormente, o trabalho desenvolvido no PAIF tem o objetivo de “fortalecer a função protetiva das famílias”, prevenindo a ruptura de vínculos e, consequentemente, a passagem à proteção especial. Prevê, portanto, “o desenvolvimento de potencialidades e aquisições das famílias e o fortalecimento de seus vínculos familiares e comunitários, por meio de ações de caráter preventivo, protetivo e proativo” . Já o PAEFI tem por objetivo orientar e acompanhar as famílias e indivíduos em situações de ameaça ou violação de direitos, tais como “situação de negligência nos cuidados e proteção a crianças, adolescentes (...)”. Tendo em vista tais objetivos, procura desenvolver ações voltadas à “promoção de direitos, a preservação e o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e sociais e para o fortalecimento da função protetiva das famílias” .
Dessa forma, a observação participante será realizada no ou nos CRAS e CREAS, tendo em vista os objetivos do presente projeto. Nesse momento, vislumbro a possibilidade de observação dos atendimentos individuais e às famílias que participam do PAIF e do PAEFI, das visitas domiciliares e das reuniões de articulação da rede. No que se refere especificamente às práticas profissionais, será importante acompanhar as discussões dos casos, as reuniões de equipe, e o processo de construção do plano de acompanhamento dessas famílias.
Em uma etapa mais sistemática da pesquisa, serão analisados os dossiês das crianças e adolescentes cuja família é atendida no PAEFI (CREAS) e serão realizadas as entrevistas em profundidade com as/os profissionais. Estas não serão objeto somente de uma descrição, mas serão tomadas enquanto possibilidade de colocar em evidência o universo das contingências a elas associadas. Assim, será importante compreender as relações que as/os profissionais estabelecem com as famílias. Também cabe esclarecer como as entrevistas estão sendo pensadas no presente projeto. Seguindo a perspectiva de Briggs (1986), concebo a entrevista enquanto “um ato cooperativo entre duas pessoas socialmente situadas”, ou uma “coperformance”, na qual o contexto mais amplo, ou melhor dizendo a “contextualização”, nos termos de Bauman e Briggs (2003), onde são produzidos os discursos, transforma e significa o dito. A contextualização”, não remete a “um inventário de elementos dado a priori”, mas sim a uma cena “criada conjuntamente pela interação dos participantes” e que é, a todo instante, renegociada e recriada, e, portanto, sem roteiros fechados e sem grandes esquemas prévios. Tal cena, vale ressaltar, é também conformada por elementos gestuais, espaciais e temporais, os quais orientam e guiam os interlocutores quanto às possibilidades de apropriação dos discursos.

3) Atividades de Análise
- Transcrição das entrevistas realizadas;
- Sistematização do material etnográfico;
- Análise dos dossiers das crianças/adolescentes cuja família é atendida no PAEFI/CREAS;
- Realização de seminários para apresentação/discussão dos dados da pesquisa;
- Produção de relatório;

Indicadores, Metas e Resultados

- Contribuir para a construção de diagnósticos e diretrizes na formulação de políticas públicas de incentivo ao fortalecimento de vínculos familiares e comunitários;
- Realização do II Colóquio Rede Anthera;
- Proposição de evento sobre o lugar das famílias nas políticas de proteção à infância e nas políticas assistenciais, com a participação de pesquisadores e operadores de tais políticas e também do judiciário;
- Organização do número Parentalidades em disputa na revista Horizontes Antropológicos, a ser publicado em 2025.
- Organização de dossiê na revista Anuário Antropológico (UNB), a ser publicado entre 2025 e 2026.
- Produção e publicação de artigos em revistas indexadas internacionalmente;
- Produção de conteúdo para o site e redes sociais da Rede Anthera;
- Criação de espaços de reflexão e formação envolvendo associações, operadores do campo assistencial e da proteção à infância, fornecendo subsídios para que possam conduzir de maneira informada a intervenção em famílias em situação de vulnerabilidade no país;



Equipe do Projeto

NomeCH SemanalData inicialData final
FERNANDA CRUZ RIFIOTIS8
KALITA TAQUES DE BRITO

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