A proposta do projeto visa contemplar a curricularização da extensão (UFPEL, 2019) no Curso de Licenciatura em Química da UFPel, bem como contribuir com impacto na comunidade universitária a ações que também pode envolver outros cursos de Química, o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática e Programa de Pós-Graduação em Química da UFPel. A proposta tem base na continuidade de estudos e reflexões oriundas da tese de Sangiogo (2014) e em experiências obtidas a partir do Projeto de Pesquisa “Planejamento e Análise de Abordagens Teórico-Metodológicas ao Ensino de Ciências/Química: Formação na e com a Pesquisa”.
As ações articulam o campo do ensino, da pesquisa e da extensão, pois os referenciais são ancorados na concepção da problematização e da dialogicidade de Paulo Freire, existindo a troca de conhecimento entre os sujeitos que ensinam e os sujeitos que aprendem. Neste caso, envolve a atuação da universidade em seguimentos de Escolas Estaduais e Municipal), a partir das intervenções no meio social, do estudo e planejamento, da reflexão sob as ações, no sentido de que a proposta tenha um ciclo de qualificação permanente dos sujeitos, com base em ações e na pesquisa.
Na educação dialógica e problematizadora os mediadores também aprendem sobre o objeto e contexto em estudo, na visão do mundo dos sujeitos, e os sujeitos participantes aprendem à luz das percepções do conhecimento científico (FREIRE, 1996, 1983). A perspectiva é de que sujeitos que constituem a Universidade e a Escola (comunidade) apre(e)ndam com base na interação, diálogo, atividades e oficinas organizadas.
Freire (2001) destaca o caráter social do conhecimento, pois, para ele, o sujeito atua, pensa e fala sobre a realidade que deriva da “mediação entre ele e outros homens, que também atuam, pensam e falam” (p. 66). Entretanto, é através dos signos linguísticos, que possuem uma função gnosiológica, que ocorre a intersubjetividade. Esta, por sua vez, necessita da existência de um “quadro significativo comum” (FREIRE, 2001, p. 82) de sentidos, demanda “a compreensão dos signos significantes dos significados, por parte dos sujeitos interlocutores problematizados” (p. 82), o que se aplica ao Ensino ou à Ciência. Segundo Freire (1987), o processo envolve um ato criativo e rigoroso, no uso de mecanismos e de metodologias na formação de subjetividades individuais e coletivas na qual anseia a integração de diferentes práxis.
No cenário deste projeto, entende-se a escola e a universidade como instituições da sociedade, uma construção cultural na qual o estudante se apropria de conhecimentos, subsídios e argumentos (como os que envolvem as Ciências da Natureza e suas Tecnologias) por ela mediados, como ferramenta cultural que busca o seu desenvolvimento (VIGOTSKI, 2001), de forma a poder refletir e agir com mais consciência e responsabilidade sobre problemas relacionados à comunidade em que está inserido, emitindo sua opinião a partir de um sistema de valores e de informações, mas dentro de um comprometimento social (SANTOS; SCHNETZLER, 1997, BRASIL, 2006). Nessa perspectiva, ao invés de um repasse de informações, cabe à escola e à universidade a função social de mediar acessos a e sobre conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade e que contribuam para a análise crítica e a resolução de problemas da realidade dos aprendizes, mediante uma educação dialógica, crítica e transformadora das potencialidades da vida para melhor (FREIRE, 1987, 2001).
Na escola, “a apropriação de conhecimento tem a sua razão de ser na sua ligação com necessidades da vida humana e com a transformação da realidade social” (LIBÂNEO, 1994, p.151). Isso remete para a importância do professor (da escola e da universidade), envolver-se na compreensão global do processo educativo na sociedade, visto que a sociedade, os contextos sociais, a Ciência, os meios de textualização e comunicação, a função da escola, os conhecimentos e as práticas do professor, modificam-se. Portanto, a escola e universidade se inserem em um projeto de Educação que “não aceitará nem o homem isolado do mundo – criando este em sua consciência –, nem tampouco o mundo sem o homem – incapaz de transformá-lo” (FREIRE, 2001, p. 75-76). A concepção de uma educação comprometida com o social induz à defesa:
"de uma escola em que as pessoas possam dialogar, duvidar, discutir, questionar e compartilhar saberes. Onde há espaço para transformações, para as diferenças, para o erro, para as contradições, para a colaboração mútua e para a criatividade. Uma escola em que os professores e alunos tenham autonomia, possam pensar, refletir sobre o seu próprio processo de construção de conhecimentos e ter acesso a novas informações. Uma escola em que o conhecimento já sistematizado não é tratado de forma dogmática e esvaziado de significado." (REGO, 2003, p. 118).
Uma das funções da escola é avançar na concepção de Ciência dos estudantes, de modo a não incorrer em visões simplistas frente à percepção do conhecimento científico a ponto de entendê-lo como algo pronto, imutável, inquestionável e com “verdades” presentes, a priori, nas experiências do senso comum.
Em sintonia com aspectos do referencial freiriano, entende-se que é preciso ver o homem na “interação com a realidade, que ele sente, percebe e sobre a qual exerce uma prática transformadora” (FREIRE, 2001, p. 75). “O homem, como um ser histórico, inserido num permanente movimento de procura, faz e refaz constantemente o seu saber” (p. 47), trata-se de um sujeito histórico que produz cultura na sua relação com outros sujeitos (históricos), que interagem com o objeto cognoscente (com o mundo material). A escola é uma das instituições que pode contribuir com a tomada de consciência das situações-limite – ultrapassando a mera apreensão da presença do fato (FREIRE, 2005).
Na educação para a libertação, para a transformação, a tarefa do educador é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza na relação entre sujeitos cognoscentes, mediados pelo objeto cognoscível, na qual o educador reconstrói, permanentemente, “e não a de dissertar sobre ele, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado, terminado” (FREIRE, 2001, p. 81). A “educação, como verdadeira situação gnosiológica, significa a problematização do conteúdo sobre o qual se co-intencionam educador e educando, como sujeitos cognoscentes” (p. 85), onde ninguém “problematiza algo a alguém e permanece, ao mesmo tempo, como mero espectador da problematização” (p. 82). Nessa prática, o diálogo possibilita conhecer a realidade para poder ter uma melhor inserção crítica e transformadora. Entretanto, em uma sala de aula, nem sempre os temas estudados na escola ou na universidade são problemas ou tornam-se problemas que interessam a todos os estudantes, pois as turmas são, normalmente, de diferentes contextos culturais, motivo pelo qual o projeto busca ad-mirar a realidade. Segundo Freire (2001, p. 31):
"a posição normal do homem no mundo, como um ser de ação e de reflexão, é de “ad-mirador” do mundo. [...] capaz de refletir sobre si e sobre a própria atividade que dele se desliga, o homem é capaz de “afastar-se” do mundo para ficar nele e com ele. Somente o homem é capaz de realizar esta operação, de que resulta sua inserção crítica na realidade. “Ad-mirar” a realidade significa objetivá-la, aprendê-la como campo de sua ação e reflexão. Significa penetrá-la, cada vez mais lucidamente, para descobrir as inter-relações verdadeiras dos fatos percebidos."
Os sujeitos em inter(ação) entre universidade-escola buscarão “ad-mirar” a realidade, de modo a possibilitar a (trans)formação de sujeitos e contextos.
Também, fundamentamo-nos na perspectiva histórico-cultural, em que os conhecimentos não são pensados como prontos e acabados, mas em permanente estado de negociação, tensão, movimentos de (re)criação e (re)interpretação de informações, conceitos e significados, mediante interações com o Outro (VIGOTSKI, 2001, 2007, 2009; BAKHTIN, 2009, OLIVEIRA, 1993; REGO, 2003). Cada contexto enriquece e realimenta o outro, mutuamente, orientando e dando a entender modos de pensar e agir no mundo. Nesse sentido, a escola, a universidade e os professores desempenham funções importantes à constituição e ao desenvolvimento humano-social dos estudantes, socializando palavras e seus significados, de forma coerente com e sobre as Ciências, tendo em vista a formação crítica e transformadora (FREIRE, 2001).
Desse modo, para além de propiciar a inter(ação) dialógica entre universidade e escola (propiciando estudo, planejamento e realização de ações), espera-se contribuir com a formação humana e social dos participantes em atividades extensionistas, considerando questões que envolvem direitos humanos, inclusão, respeito à diferença, como às diferentes culturas, às questões de gênero e étnico-raciais (BRASIL, 2012, 2013, 2015, UFPEL, 2019).