A família Tabanidae (Diptera) contempla um grupo de moscas hematófagas popularmente conhecidas como mutucas (MULLENS, 2002). Enquanto os machos alimentam-se unicamente de néctar ou seiva, a maioria das fêmeas necessita fazer o repasto sanguíneo para que ocorra o desenvolvimento dos ovos (BALDACCHINO et al., 2014). Sua picada é dolorosa, gerando lesões na pele e pode acarretar em perda de sangue, sendo responsáveis por prejuízos econômicos na produtividade pecuária (PERICH; WRIGHT; LUSBY, 1986; BALDACCHINO et al., 2014).
Além dos efeitos negativos, causados diretamente pelas mutucas, elas são também consideradas importantes vetores mecânicos de diferentes patógenos que afetam o gado e outros animais (BALDACCHINO et al., 2014). Vetores mecânicos se diferem de vetores biológicos por somente transmitir o patógeno de um hospedeiro infectado para outro, sem abrigar nenhuma parte do seu ciclo biológico e, por essa razão, são geralmente menos eficientes (MULLENS, 2002; SCOLES; MILLER; FOIL, 2008). A relevância dos tabanídeos no cenário de transmissão mecânica se dá pelo fato de: 1) atingirem altas velocidades e voar longas distâncias, 2) terem peças bucais grandes capazes de carregar patógenos e 3) não serem persistentes a um único hospedeiro durante um mesmo repasto sanguíneo (KRINSKY, 1976; FOIL, 1989).
Dentre as doenças associadas ao gado e cujos agentes etiológicos foram detectados em tabanídeos, estão: leucose bovina (BUXTON; HINKLE; SCHULTZ, 1985), tripanossomíases (DESQUESNES; DIA, 2003; JAIMES-DUEÑEZ; TRIANA-CHÁVEZ; MEJÍA-JARAMILLO; 2018), anaplasmose (HORNOK et al., 2008; SCOLES; MILLER; FOIL, 2008; RODRIGUES et al., 2022) e babesiose (TAIOE et al., 2017) - estas duas últimas compondo o complexo de doenças da Tristeza Parasitária Bovina (TPB). Os sintomas clínicos da TPB incluem febre, anemia, anorexia e icterícia (KESSLER; SCHENK, 1998). Porém, o grau de virulência, as taxas de mortalidade e sintomas mais específicos, diferem conforme o patógeno em questão (KESSLER; SCHENK, 1998; ALMEIDA, 2006).
Majoritariamente, os agentes etiológicos da TPB, os protozoários Babesia bigemina, Babesia bovis e a bactéria Anaplasma marginale, são transmitidos pelo carrapato Rhipicephalus microplus (Acari: Ixodidae), sendo considerado o principal vetor biológico desses parasitos e o transmissor de maior interesse econômico e epidemiológico (BOCK et al., 2004; MIRABALLES; RIET-CORREA, 2018; MIRABALLES; ARÁOZ, 2019). Diferentemente de A. marginale, para as espécies de Babesia não há registros de transmissão mecânica realizada por insetos, apenas por inoculação e transfusão de sangue (KESSLER; SCHENK, 1998; GRAÇA et al., 2000; Center for Food Security & Public Health & Institute for International Cooperation in Animal Biologies, 2008). No entanto, havendo chance de contaminação mecânica, mesmo sem relevância epidemiológica relatada, não se pode descartar a possibilidade das mutucas como vetores mecânicos de Babesia (Center for Food Security & Public Health & Institute for International Cooperation in Animal Biologies, 2008; WOAH, 2021).
A República Oriental do Uruguai (30ºS - 35ºS), país que tem todo seu território situado no bioma Pampa, é caracterizado por ter as quatro estações do ano bem definidas (BARREIRO; ARIZMENDI; TRINCHIN, 2019). Nesse bioma, as mutucas se fazem presentes em maior abundância durante os meses mais quentes do ano, de setembro a março, quando há maior umidade relativa e temperaturas mais altas (KRÜGER; KROLOW, 2015; LUCAS et al., 2020). Por estar na zona de instabilidade enzoótica para TPB, historicamente o país sofre graves perdas econômicas por conta de surtos de anaplasmose e babesiose, cerca de 14 milhões de dólares ao ano (SOLARI, 2006; MIRABALLES; RIET-CORREA, 2018). A instabilidade enzoótica é devido à localização geográfica do Uruguai, considerada limítrofe para carrapatos bovinos (NARI, 1995). Os prejuízos econômicos se dão pelo comprometimento gerado na produção de gado e na comercialização de produtos derivados, somado aos custos de tratamento para as doenças e as medidas de controle para R. microplus (SOLARI; NARI; CARDOZO, 1992; SOLARI, 2006; MIRABALLES; RIET-CORREA, 2018; MIRABALLES; ARÁOZ, 2019).
Atualmente, como efeito das medidas de controle para carrapatos no país, existem duas situações epidemiológicas distintas para ocorrência de carrapatos bovinos no Uruguai: uma região sudoeste, que corresponde à área livre de carrapatos e a restante considerada infestada. (MIRABALLES; RIET-CORREA, 2018). Ainda que R. microplus seja apontado como o principal transmissor dos parasitos da TPB (BOCK et al., 2004; MIRABALLES; RIET-CORREA, 2018; MIRABALLES; ARÁOZ, 2019), um estudo realizado com tabanídeos do Uruguai, detectou a presença de A. marginale em quatro espécies de mutucas (RODRIGUES et al., 2022). Os indivíduos positivos foram capturados tanto em áreas infestadas pelo carrapato, quanto em áreas classificadas como livres de carrapatos, indicando a potencial participação de mutucas nos casos de anaplasmose nesses locais (RODRIGUES et al., 2022).
A babesiose, por sua vez, pode ser intimamente associada à A. marginale, dada a sobreposição das áreas de ocorrência dos patógenos e a taxa de coinfecção com anaplasmose na América Latina que é de aproximadamente 26% (KESSLER.; SCHENK, 1998; FERREIRA et al., 2022; RIET-CORREA et al., 2022). A doença causada por B. bovis, além dos sintomas comuns para TPB, é mais patogênica e mais letal, provocando sintomas nervosos que levam à agressividade do animal, afetam a locomoção, causam tremores musculares e perda de movimento (KESSLER.; SCHENK, 1998; ALMEIDA, 2006; PARODI et al., 2022).
Embora a transmissão mecânica de patógenos seja considerada menos eficiente em relação àquela realizada por vetores biológicos, as mutucas podem desempenhar papel epidemiológico em zonas limítrofes para ocorrência do vetor biológico. Ainda assim, poucos estudos foram desenvolvidos visando a detecção de Babesia spp. em vetores mecânicos e pouco se sabe sobre o papel dos tabanídeos no contexto da babesiose na América Latina (COSTA et al., 2013; TAIOE et al., 2017; SONTIGUN et al., 2022).
Nesse sentido, devido a relevância de Babesia spp. e os achados recentes para A. marginale, o presente estudo se propõe a avaliar a presença de B. bigemina e B. bovis em tabanídeos oriundos de áreas com diferentes situações epidemiológicas para Rhipicephalus microplus no Uruguai por meio de técnica de biologia molecular.
A família Tabanidae apresenta características anatômicas e comportamentais que as tornam importantes vetores mecânicos (FOIL, 1989) e diversos patógenos atrelados ao gado já foram detectados em mutucas em diferentes locais do mundo, inclusive no Uruguai (BUXTON; HINKLE; SCHULTZ, 1985; FOIL, 1989; DESQUESNES; DIA, 2003; SCOLES; MILLER; FOIL, 2008; BALDACCHINO et al., 2014; TAIOE et al., 2017; JAIMES-DUEÑEZ; TRIANA-CHÁVEZ; MEJÍA-JARAMILLO; 2018; RODRIGUES et al., 2022). Considerando a importância econômica da babesiose para os rebanhos Uruguaios e os achados recentes para A. marginale naquele país (RODRIGUES et al., 2022), este estudo se justifica pelo interesse de ampliar os conhecimentos sobre os patógenos carregados por tabanídeos na América Latina e dar subsídios para trabalhos futuros sobre o papel destes como potencial vetores mecânicos de doenças na região.