Numa sociedade desigual como a que vivemos, dizia Milton Santos, o valor de cada pessoa e o nível de cidadania que ela alcança estão relacionados ao acesso a bens e serviços, estabelecido pelo lugar no qual a pessoa está. Assim, “enquanto um lugar vem a ser condição de sua pobreza, um outro lugar poderia, no mesmo momento histórico, facilitar o acesso àqueles bens e serviços que lhes são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhes faltam.” (Milton SANTOS, 1987:81). O Kilombo Urbano Ocupação Canto de Conexão é um exemplo de ação coletiva que atua na direção da construção desse outro lugar. Hoje, o Kilombo opera como um posto de redistribuição gratuita de itens de primeira necessidade (alimentos, roupas, artigos de higiene) e de facilitador do acesso a serviços e bens (sobretudo saúde, educação e cultura), com notória atuação na promoção de eventos e atividades educativas e culturais, sem ligação direta com o Estado.
Surgido a partir de uma ocupação iniciada por estudantes em 2017, a trajetória do Kilombo mostra sua rápida metamorfose em espaço de aquilombamento e centro cultural com atuação social reconhecida e apoiada por diferentes segmentos da sociedade local. Enquanto movimento social que luta por direito à cidade, à moradia digna, à educação, saúde e segurança alimentar, o Kilombo Urbano existe em uma teia social com nós em diferente corpos e endereços. Com foco na defesa de direitos civis e territórios do povo preto, entre suas/eus militantes e apoiadoras/es se encontram as mais variadas pessoas; pessoas que são ocupantes e aquilombades, mas não residem no espaço. O contexto material primário e cotidiano do Kilombo, onde moradories e ocupantes se dedicam a diversas atividades, se dá num antigo casarão localizado no Porto. Casarão para o qual já foram emitidas ordens de despejo em mais de uma ocasião, o que nos mantém a todes em permanente estado de alerta frente à insegurança e incerteza de permanência no espaço.
Enquanto temos ganhado tempo com ações jurídicas de defesa, apoio da sociedade e inclusive da Prefeitura Municipal, a ordem de reintegração imediata de posse, despachada em julho do ano corrente, leva nossa mobilização a buscar outras estratégias efetivas e duradouras voltadas a assegurar e garantir o KIlombo como bem público e patrimônio cultural da cidade de Pelotas. É com essa preocupação que voltamos nossos esforços ao registro e disponibilização da história do movimento e suas atividades ao longo do tempo.
Mesmo com organização paralela ao Estado e à burocracia que lhe é característica, movimentos sociais também produzem acervos e arquivos que materializam e registram sua existência e atividades. Desde o começo da Ocupação, coleções de objetos, fotografias, recortes de jornais e cartas têm se formado espontaneamente no Kilombo. O próprio casarão é exemplar da intervenção da ocupação no contexto social e material local. Antes em franco processo de arruinamento, abandonado desde meados dos anos 2000, com perda parcial da cobertura e paredes em desmoronamento, o edifício foi reparado, revitalizado e posto em uso comunitário, contribuindo para a preservação da construção (de meados do século XX) e para a segurança da vizinhança. Folhetos, cards e posts nas redes sociais são rotineiramente produzidos e correspondem à principal forma de comunicação com membras/es/os. Suas redes sociais mostram articulações com movimentos sociais de outras regiões do Brasil e outros países. Entrevistas e reportagens na imprensa local sobre a Ocupação e suas atividades culturais e sociais, expressam o reconhecimento que ela vem alcançando na cidade. Esses são alguns exemplos de materiais e informações que documentam a função social do Kilombo.
Ampliando o sentido dado por Jean CAMOLEZE e Sonia TROITIÑO (2019) aos arquivos documentais dos movimentos sociais, pode-se abordar o conjunto das evidências materiais produzidas ao longo da existência de um dado movimento social por meio de seu potencial memorialístico (evidências que comprovam fenômenos, eventos, atividades, etc., ligado à formação da história do movimento) e instrumental (formação e comunicação entre membras/es/os, estruturação e manutenção da base propriamente dita do movimento). A produção material e documental dos movimentos sociais expressa sua autorrepresentação, seu protagonismo e a contradição social como principal bandeira de luta. São documentos uteis para a compreensão da sociedade na qual se inserem, para a herança cultural nacional, testemunho social e pesquisa científica (Heloisa BELLOTO 2014:306).
Essa documentação pode ser organizada e sistematizada em acervos, arquivos, catálogos, mapas, descrições e classificações, procedimentos e produtos comuns na Arqueologia (e em outras disciplinas científicas) cujo estatuto técnico-forense de ‘prova’ é conhecido pelo público em geral, sobretudo via grande mídia televisiva. A organização de acervos e arquivos pode agilizar a consulta e o acesso à informação, subsidiando linhas de argumentação de base jurídica para defesa da permanência da ocupação e desapropriação do casarão, por exemplo contrapondo o exercício da função social do prédio nos últimos sete anos em oposição a seu abandono nos dez anos anteriores.
A Arqueologia tem bastante familiaridade com a produção destes documentos e sua elaboração é uma das habilidades que se espera de egresses do curso de graduação. Os trabalhos de levantamento e sistematização de dados (inventário e indexação), necessários à organização dos acervos e arquivos, assim como a prática da pesquisa participativa com ocupantes para definição de ações futuras, contribuirão com elementos técnicos e disciplinares à formação universitária de discentes, para além do necessário contato com a realidade social oferecido pela extensão. Esse projeto tem, portanto, uma forte interface com o ensino, enfatizando, pela prática, o desenvolvimento da habilidade de produzir e analisar a documentação de base para laudos técnicos. O ensino também é favorecido pela interdisciplinaridade e transdisciplinaridade do projeto. Por um lado, metodologias e saberes próprios de outras disciplinas, como Antropologia, História, Geografia, Arquitetura, Museologia, serão mobilizadas para a realização das ações de extensão já propostas e outras aventadas (organização e inventário de acervos e arquivos, elaboração de mapas espaciais, mapas afetivos, plantas topográficas e arquitetônicas, de etnografias arqueológicas e mais), que pedem a aplicação de conhecimentos práticos de distintas áreas científicas. Por outro lado, a ênfase do projeto na horizontalidade e trânsito de saberes entre os movimentos sociais, as mais velhas e os mais velhos do Kilombo e os conhecimentos técnicos trazidos pela equipe universitária, marca a transdisciplinaridade pretendida.
O projeto tem também uma interface de pesquisa, tanto discutindo temas de cunho mais metodológico como gestão de acervos e colaboração, quanto de temas mais conceituais, como território cultural, ancestralidade, direitos humanos e mais. Os objetivos e metodologia são articulados pela noção de território cultural. O conceito de território aqui utilizado vai além da noção de espaço físico para concebê-lo como contexto cultural, como rede de relações sociais e culturais construídas no espaço e no tempo, articulando modos de ser e viver às características físicas e espaciais da cidade e seu entorno. “Assim se compõe um território cultural, um lugar pleno de significados construídos no processo de transformação e adaptação [humana] àquele ambiente, carregado de sentidos de identidade e pertencimento” (Meneses 2014:62). Tal noção permite considerar o Kilombo Urbano como sendo/estando em território conflituoso em dupla dimensão, tanto em relação à disputa pela permanência no terreno, quanto pela disputa entorno dos significados e representações periféricas da cidade e da mobilidade pela cidade.
Essa orientação conceitual do projeto permite fazer as ligações entre o mundo material do Kilombo, o casarão, as coleções de objetos e documentos e, por que não assumir seu conteúdo material, os corpos de moradories, ocupantes e aquilombades e seu trânsito pela cidade. A partir de trajetórias de vida, dos significados atribuídos aos lugares, deslocamento e circulação (de pessoas e coisas), o Kilombo Urbano conta uma história, uma história de si e de suas/seus, mas também uma história da cidade, história narrada a partir de um olhar periférico, racializado e socialmente subalternizado. Uma história alternativa e crítica, portanto, cujo delineamento ao longo das atividades de organização e sistematização de acervos e arquivos, será quase uma consequência natural.
Outra característica do projeto é que seu objetivo ‘forense’ de organizar e produzir documentação comprobatória é problematizado no compromisso epistêmico-político da produção de conhecimento como bem público, disponível e disponibilizado à transformação social em direção à equidade e condições de bem viver. Isso implica não apenas em dirigir o conhecimento produzido na academia à instrumentalização de lutas e movimentos sociais, quanto em fazer o caminho inverso e trazer os conhecimentos específicos de lutas e movimentos sociais pela equidade e condições de bem viver para a academia, assumindo radicalmente a horizontalidade entre ambos. A transdisciplinaridade, assim, assume um caráter teórico e político, além de metodológico, favorecendo a adoção de metodologias participativas.