No Brasil, um dos principais ambientes estuarinos da zona costeira é o Estuário da Lagoa dos Patos (ELP), localizado na porção Sul da Planície Costeira do Rio Grande do Sul (PCRS). A Lagoa dos Patos é considerada a maior laguna costeira do tipo estrangulada do mundo (Kjerfve, 1986; Möller; Fernandes, 2010). Tal singularidade revela o notável valor científico e a relevância internacional da geodiversidade desse sistema, levando à proposição do Projeto Geoparque Paisagem das Águas, que tem como objetivo fomentar estratégias de desenvolvimento sustentável a partir da proposição e implementação de um Geoparque que abrange os recursos hídricos fluviais, lacustres, lagunares e oceânicos vinculados à paisagem das águas no Estuário da Lagoa dos Patos (UFPEL, 2023).
O Canal São Gonçalo (CSG) é um importante elemento da geodiversidade do ELP. Corresponde a um canal natural de comunicação entre a Lagoa Mirim e a Lagoa dos Patos, que resultou de um processo de colmatação das barreiras costeiras no contexto de subida do nível do mar holocênico. O CSG tem fluxo predominante no sentido Mirim-Patos. Possui cerca de 75 quilômetros de comprimento, largura média entre 200 e 300 metros e profundidade média de 6 metros (SPH, s.d.).
Sob condições naturais, a imersão da cunha salina no estuário da Lagoa dos Patos era responsável pela inversão do fluxo do CSG, fazendo com que a água salgada que penetra na Lagoa dos Patos através da Barra do Rio Grande conseguisse avançar em direção à Lagoa Mirim pelo CSG, formando o maior sistema de lagunas da América do Sul e um dos maiores do mundo. Entretanto, em 1977 foi construída a Barragem Eclusa São Gonçalo, com o objetivo de evitar a imersão de água salgada, via CSG, até a Lagoa Mirim (Simon; Silva, 2015). Esta obra viabilizou o desenvolvimento de vastas lavouras de produção de arroz irrigado. A água para abastecimento urbano do município de Rio Grande também é captada no CSG, ao sul da Barragem Eclusa.
O CSG é responsável pela drenagem final da Bacia Hidrográfica Mirim São Gonçalo (BHMSG), que engloba uma extensão total de 62.250 km², dos quais 29.250 km² pertencem ao território brasileiro, abrangendo 21 municípios, enquanto os restantes 33.000 km² estão localizados no território uruguaio, compreendendo 5 departamentos. Os principais afluentes que deságuam no território brasileiro incluem o Arroio Pelotas, os rios Piratini e Jaguarão, bem como os sistemas hidrográficos costeiros que drenam para o continente (incluindo o banhado do Taim e o sistema hidrográfico da Lagoa Mangueira). No lado uruguaio, os principais sistemas de drenagem que compõem a BHMSG correspondem aos rios Cebollati, Tacuari, Sarandi e San Miguel (ALM, 2022; Fernandes; Collares; Corteletti, 2021; Kotzian; Marques, 2004).
A capacidade máxima de descarga do Canal São Gonçalo para a Laguna dos Patos é de cerca de 4 mil m³s-¹ (Oliveira et al., 2015). De acordo com Sosinsk (2009), a vazão média anual da BHMSG é de 395, 91 m³s-¹, valor este que diminui no período de verão para 208,60 m³s-¹, devido à demanda de água no mês de janeiro para a irrigação das lavouras arroz.
A gênese e desenvolvimento do CSG corresponde a um dos momentos mais importantes da história geológico-geomorfológica da PCRS e do ELP. As variações do nível do mar, durante o Quaternário, viabilizaram a formação de quatro sistemas deposicionais do tipo Laguna-Barreira associados ao clímax dos quatro eventos transgressivos do nível do mar: Barreiras I, II e III, no Pleistoceno (idades de 400, 325 e 120 mil anos, respectivamente), e a Barreira IV (últimos 5 mil anos), ainda ativa, no Holoceno (Villwock; Tomazelli, 1995; Tomazelli; Dillenburg; Villwock, 2000; Weschenfelder, 2005; Villwock; Tomazelli; 2007).
O sistema Laguna-Barreira II desencadeou o isolamento parcial da Lagoa Mirim, ao passo que o sistema Laguna-Barreira III foi responsável pelo desenvolvimento final, muito próximo às condições atuais, do que hoje se denomina Sistema Lagunar Patos-Mirim (Farion, 2007). Foi a partir da formação da Barreira IV, no Holoceno, que a Lagoa Mirim passou a se comunicar com o Oceano Atlântico exclusivamente através do CSG. Em tempos anteriores à evolução do sistema Laguna-Barreira IV a Lagoa Mirim se caracterizava como um ambiente estuarino à parte, conectado com o Oceano Atlântico através de um canal chamado de inlet, que corresponde aos terrenos baixos onde atualmente se situa o Banhado do Taim. Foi através da última transgressão do nível do mar (e a consequente evolução da Barreira IV) que essa comunicação se fechou por completo (Lima; Parise, 2018).
Em suas primeiras fases de evolução enquanto elemento exclusivo de comunicação da Lagoa Mirim com a Lagoa dos Patos, o CSG se caracterizava como um amplo canal de conexão, que na sua margem oeste se encontrava em contato com depósitos lagunares e de retrabalhamento superficial do sistema de leques aluviais, e na margem leste se posicionava em contato com os depósitos praiais, marinhos e eólicos da Barreira II (Villwock et al., 1994). Este amplo canal foi sendo preenchido por materiais de origem flúvio-lacustre ao longo do Holoceno dando origem a um sistema que se organiza em uma área de 790,91 Km² e abrange parte dos municípios de Pelotas, Rio Grande, Capão do Leão e Arroio Grande.
O CSG compreende, dessa forma, um sistema extraordinário, pois representa um elemento-chave da geodiversidade do ELP, formado por lagunas conectadas através de um único e estreito canal natural e sua planície de inundação. Esse megacomplexo costeiro foi estudado apenas de forma indireta e genérica (Godolphim 1985; Manzolli, 2016; Manzolli et al., 2018), havendo uma lacuna de informações relativas à sua origem e evolução geomorfológica, sobretudo diante das alterações antrópicas impostas ao sistema natural na atualidade. Dessa forma, estudos de geocronologia capazes de definir o quadro evolutivo do CSG e de sua planície de inundação se mostram de extrema relevância para o detalhamento e atualização do conhecimento científico sobre a evolução geológico-geomorfológica do ELP e da PCRS, sobretudo em um cenário de mudanças climáticas, alterações na paisagem e mudanças nas coberturas da terra.
Sistemas lacustres e estuarinos podem preservar alguns dos melhores registros terrestres de mudanças ambientais, muitas vezes fornecendo conjuntos de dados temporalmente contínuos (Roberts et al., 2018). Os avanços nas técnicas de datação por Luminescência Opticamente Estimulada (LOE) expandiram sua aplicação a uma gama mais ampla de ambientes deposicionais, incluindo sedimentos lacustres. Esta aplicabilidade mais ampla aumenta a versatilidade da datação por luminescência no estudo de mudanças ambientais.
Vários autores têm aplicado a LOE ao estudo de sedimentos lacustres (Scholz et al., 2007; Kadereit; Dewitt; Johnson, 2012; Shanahan et al., 2013). Esses estudos contribuíram também para o avanço das técnicas de datação por luminescência no contexto de sequências de sedimentos lacustres, o que propiciou a crescente importância da LOE na compreensão das mudanças ambientais preservadas nestes materiais sedimentares.
Os sedimentos nos estuários são predominantemente terrígenos, oriundos da erosão de rochas continentais, transportados sobretudo pelos fluxos fluviais e oriundos do oceano, o que se coloca como ideal para datação por LOE. A análise dos resultados das amostras (a datação da planície estuarina) permitirá definir a evolução geológica e geomorfológica que esse sistema experimentou, na perspectiva de compreender a sua história natural. Tal processo envolve determinar a idade dos sedimentos acumulados ao longo do tempo. Mas para além da idade, a datação por LOE ajuda a reconstruir a história das mudanças e eventos geológicos e geomorfológicos mais recentes (Quaternário) pelos quais os estuários passaram (Kaiser et al., 2005).
A datação e o conhecimento dos processos evolutivos dos estuários, sistema do qual o CSG faz parte, mostram-se como particularmente importantes no momento em que a história humana se situa, em função do contexto de mudanças climáticas. As mudanças climáticas atuais, que implicam em alterações significativas nos padrões climáticos da Terra resultantes de atividades antrópicas, vêm produzindo alterações nas dinâmicas dos estuários, o que pode impactar de forma importante o CSG e as amplas áreas de deposição situadas em suas margens, que sustentam relevantes sistemas de áreas úmidas.
Efetivamente, as mudanças climáticas implicam em aquecimento global e elevação do nível do mar. Os estuários são particularmente vulneráveis a essa elevação do nível do mar, estando sob a ameaça de sofrerem inundações e intrusão de água salgada nos seus diversos ecossistemas. Por outro lado, as mudanças climáticas estão afetando os padrões de chuva e secas. Isso pode levar a variações extremas nos níveis de água nos estuários, pois secas prolongadas podem reduzir o fluxo de água doce, afetando a biodiversidade e a saúde dos ecossistemas. O oposto (chuvas catastróficas) também altera a dinâmica natural desses frágeis ambientes, exigindo a acomodação de concentrações elevadas de água doce oriundas dos sistemas fluviais responsáveis pela drenagem das bacias hidrográficas que alimentam o estuário.
Isso transforma em urgência a necessidade de se levantar elementos sobre o seu processo evolutivo ao longo do tempo, como forma de registrar a história da Terra e encontrar meios adequados - através do conhecimento efetivo da dinâmica desses meios -, para a adoção de medidas de mitigação e adaptação, essenciais para proteger essas áreas sensíveis e garantir sua resiliência frente aos desafios climáticos e de uso e ocupação.