Em 31 de dezembro de 2019, o primeiro caso de pneumonia de etiologia desconhecida foi relatado na cidade de Wuhan, província de Hubei, China. Para identificar a etiologia, uma série de possíveis agentes etiológicos foi apontada como possíveis causadores, como: SARS-CoV, MERS-CoV, vírus da influenza aviária e outros patógenos respiratórios comuns. Finalmente, um novo coronavírus, chamado temporariamente nCoV2019, foi identificado como o patógeno responsável pela doença descrita primeiramente na cidade chinesa de Wuhan (WHO, n.d.). A doença respiratória aguda e infecção tipo pneumonia em humanos foi denominada de COVID-19 (doença de coronavírus 2019), sendo o agente etiológico denominado de coronavirus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Devido ao crescente número de casos na China e em vários países do mundo, a OMS declarou a COVID-19 como uma emergência de saúde global, considerando-a como uma pandemia em março de 2020 (Shanmugaraj et al., 2020).
O SARS-CoV-2, responsável pela COVID-19, é um vírus RNA de fita simples envelopado, pertencente ao gênero Betacoronavirus (Chan et al., 2020; Lu et al., 2020). O genoma do coronavírus foi identificado a partir de dois casos de pneumonia durante o surto em Wuhan em 2019 (Chen et al., 2020), apresentando um tamanho de 29.881 pb. e compreendendo quatro proteínas estruturais: spike (S), nucleocapsídeo (N), envelope (E) e membrana (M) (Siddell et al., 2010) (figura 1). A proteína S é responsável pela ligação do vírus ao receptor ACE2 e fusão com a membrana celular (Kandeel et al., 2018), a proteína N interage com o RNA viral para formar a ribonucleoproteína, as proteínas E e M participam da montagem de novas partículas virais.
Figura 1: Estrutura viral de SARS-CoV-2. Fonte: autoria própria.
A análise filogenética indica que o SARS-CoV-2 está intimamente relacionado (com 88% de identidade) a dois coronavírus do tipo síndrome respiratória aguda (SARS) em morcego, SL-CoVZC45 e SL-CoVZXC21, coletados em 2018 em Zhoushan, leste da China , mas estavam mais distantes do SARS-CoV (cerca de 79%) e MERS-CoV (cerca de 50%) (Chen et al., 2020; Lu et al., 2020). Com base nos resultados de investigações genômicas e na presença de alguns morcegos e animais vivos no mercado de frutos do mar na cidade de Wuhan, o SARS-CoV-2 pode ter se originado de morcegos ou excrementos de morcegos associados a materiais contaminados no mercado ou nas proximidades (Zhou et al., 2020).
Com relação ao espectro clínico do COVID-19, ele varia entre doenças leves (como tosse seca, dor de garganta e febre) à síndrome respiratória aguda grave (SARS) com alto risco de mortalidade, desenvolvendo complicações fatais incluindo falência de órgãos, choque séptico, edema pulmonar, pneumonia grave e síndrome do desconforto respiratório agudo, necessitando de respiradores artificiais. As evidências atuais sugerem que pacientes com idade avançada, comorbidades preexistentes (como diabetes, hipertensão, doença cardiovascular, insuficiência renal e outras doenças respiratória como asma e bronquite) são consideradas grupos de risco para a infecção pelo SARS-CoV-2 (Lai et al., 2020; Rothe et al., 2020).
A pandemia de COVID-19 exige esforços rápidos e urgentes voltados ao diagnóstico, tratamento e prevenção da infecção. Até o desenvolvimento de uma vacina eficaz contra a infecção por SARS-CoV-2, as medidas de controle se baseiam em distanciamento social, isolamento de pacientes positivos e quarentena de indivíduos com suspeita de infecção. Ainda que essas intervenções tenham impacto importante para retardar a transmissão e minimizar a sobrecarga dos sistemas de saúde (Walker and et al., 2020), o número de casos confirmados e de mortes resultantes desta doença permanecem crescendo em escala exponencial no Brasil.
Nesse sentido, diferentes plataformas vacinais têm sido exploradas, alicerçadas em estratégias já avaliadas para SARS-CoV e MERS-CoV, incluindo vacinas baseadas em RNA mensageiro, DNA, “virus-like particles”, subunidades recombinantes e vacinas vetorizadas, principalmente por vetores virais (Prompetchara et al., 2020). Uma das proteínas mais importantes na patogênese do COVID-19 é a proteína viral Spike (S) (Figura 1). O receptor para o coronavírus nas células hospedeiras humanas é a proteína da enzima de conversão da angiotensina 2 (ACE2) (16). Após a ligação ao receptor, a proteína Spike viral é clivada por proteólise dependente de ácido por catepsina, TMPRRS2 ou protease de furina, seguida pela fusão do envelope viral nas membranas celulares. Spike pode ser clivada em uma subunidade N-terminal S1 contendo o domínio de ligação ao receptor (RBD) e uma região C-terminal S2. Comparada a outras proteínas do coronavírus, a proteína Spike tem as sequências de aminoácidos mais variáveis que resultam da seleção positiva mais forte entre todos os genes do vírus para se adaptar a seus hospedeiros (Hu et al., 2017). O domínio de ligação ao receptor (RBD) na proteína Spike, localizada na membrana externa do coronavírus, medeia a ligação ao receptor ACE2 e desempenha um papel importante na entrada do vírus na célula hospedeira (Song et al., 2019). Essa proteína pode, portanto, ser usada como potencial candidato a vacina, pois é o principal alvo de anticorpos neutralizantes (Peiris et al., 2004). Além desses alvos, abordagens de imunoinformática tem mapeado diversos epítopos de linfócitos T e B em outras proteínas de SARS-CoV-2, para identificação, seleção e construção de outros potenciais antígenos vacinais(Baruah and Bose, 2020; Bhattacharya et al., 2020; Lucchese, 2020).
Sabe-se que, em geral, o combate a infecções virais é coordenado por uma resposta imune do tipo Th1 somado à indução de anticorpos neutralizantes (2). Assim, o uso de estratégias vacinais capazes de estimular esse tipo de resposta, parecem ser abordagens promissoras. A vacina BCG, uma cepa atenuada de Mycobacterium bovis, é mundialmente utilizada contra tuberculose (TB) (Bannon; and Finn, 1999; J. Li et al., 2020) e também empregada como um dos tratamentos de maior eficácia contra câncer superficial de bexiga (Alhunaidi and Zlotta, 2019). A vacinação com BCG induz, majoritariamente, uma resposta celular mediada por linfócitos Th1, além de aumentar significativamente a secreção de citocinas pró-inflamatórias, como IL-1B, que desempenha um papel vital na imunidade antiviral (Kleinnijenhuis et al., 2014).
Estudos têm sugerido que algumas das vacinas administradas rotineiramente em bebês e crianças, como a BCG, também tem efeitos não-específicos sobre o risco de doença e morte por outras condições, além daquelas para as quais as vacinas foram projetadas para prevenir. No caso de BCG, sua administração foi associada ao menor risco subsequente de doença e morte por outras causas, fato decorrente de mecanismos conhecidos por “trained immunity” e imunidade heteróloga (Higgins et al., 2016; Kleinnijenhuis et al., 2014). Um estudo demonstrou que a vacinação com BCG induziu reprogramação epigenética in vivo de monócitos contra infecção experimental com uma vacina atenuada contra o vírus da febre amarela com papel fundamental da IL-1b como mediador dessa resposta (Arts et al., 2018). Uma abordagem epidemiológica recente comparou políticas de vacinação com BCG em diversos países com taxas de morbimortalidade por COVID-19, demonstrando que países sem a vacinação universal com BCG implementada foram mais severamente afetados do que países com políticas universais de longa data (Miller et al., 2020).
A construção de cepas recombinantes de BCG que proporcionem maior estímulo do sistema imune tem sido explorada para melhorar sua eficácia contra TB (Nieuwenhuizen and Kaufmann, 2018), aumentar seu efeito antitumoral na terapêutica de tumores de bexiga (Begnini et al., 2015), e expressar antígenos de diferentes patógenos para emprego como vetor vacinal (Bastos et al., 2009; Zheng et al., 2015). Nesse contexto, salienta-se o potencial da construção e do uso de BCG como vetor vacinal expressando antígenos de SARS-CoV-2 como ferramenta profilática contra COVID-19.