Nome do Projeto
A cidade a partir das margens: espaço urbano como produção sociocultural
Ênfase
Pesquisa
Data inicial - Data final
04/01/2021 - 04/01/2025
Unidade de Origem
Coordenador Atual
Área CNPq
Ciências Humanas
Resumo
Este projeto parte da ideia que a cidade é formada pela atividade de seus habitantes, que não é uma realidade pronta, mas em processo. O interesse do projeto é investigar os "modos de habitar" dos seus habitantes, que através das relações na cidade forjam os diferentes territórios simbólicos e físicos que as forjam. As relações entre agentes das "comunidades" e os agentes de instituições que "pensam sobre e agem na cidade, sejam do poder público ou da sociedade civil, também são alvo de interesse do projeto, uma vez expressam muitas das relações de poder que produzem ações criativas na cidade. Por último, há um especial interesse em investigar essas relações através de espaços das "margens" da cidade, os quais se caracterizam por uma fluidez e indefinição na formulação de seus territórios. Essa característica permite que as ideias e valores que disputam a fundação dos espaços urbanos fiquem mais evidentes.

Objetivo Geral

O objetivo é desvendar relações sociais, memórias e narrativas que se configuram como ações culturais e de poder, capazes de reconhecer a ação criativa e política dos diferentes atores sociais que compõem uma cidade e produzem o território habitado.
Específico
- Investigar as dinâmicas simbólicas que “produzem as periferias” tanto através de suas expressões religiosas e artísticas, como através de suas práticas cotidianas de lazer e de trabalho.
- Investigar os processos de construção de memória que “tornam objeto” a experiência fluída e mutável da vida nas margens. Entender como produções de cultura material e da paisagem são constituídos como “patrimônios da memória” em uma realidade que se faz na mobilidade, como é o caso da vida nas margens.
- Investigar as relações entre as instituições públicas e privadas e seus agentes com as instituições e os atores sociais que habitam os espaços marginais da cidade. Como essas relações de poder produzem o território da cidade.
- Aprofundar as relações teóricas entre os conceitos de fronteira e periferia através de estudos etnográficos e de memória.

Justificativa

Este projeto propõe a investigação de um aparente paradoxo, ou seja, os processos de democratização das sociedades latino-americanas têm produzido nas cidades uma dinâmica que expressa o quê Fernández (2010) chama de dialética da destruição e da reconstrução. O autor chama a atenção para que na maior parte da América Latina a democratização foi acompanhada pelo aumento sem precedentes de violência urbana, fragmentação social e injustiça social. Caldeira e Holston (2005) mostram que, no Brasil, a liberalização política foi envolvida pela desregulação dos mercados e pela privatização de serviços e de bens públicos, fazendo da democratização um processo profundamente ambivalente. Caracterizam as tensões democráticas no Brasil como “um choque entre elites entrincheiradas e cidadãos insurgentes” (Holston, 2009:17). Claramente estes dilemas da democracia contemporânea do Brasil nos une a América Latina por nosso passado colonial e o que ele gerou em termos da relação entre a população e as elites desses países, ou seja, governos autoritários, com pouca ou nenhuma interlocução com a imensa maioria da população que governavam. O quadro de transformações sociopolíticas estimulados pela democratização nos países latino-americanos fazem surgir “problemas indutores de crises” que exigem uma renovação institucional nas sociedades. Ao tratar de questões que envolvem as cidades e seus modelos de vida, nos juntamos a Holston (2008) quando alerta para a ideia que a modernização no Brasil, visto através das intervenções no planejamento urbano, produziram ações que reiteraram a tradição autoritária das formas de governo locais, apesar do propósito democrático e igualitário de suas propostas.
Para contribuir para este problema, propomos ver a cidade através dos modos de habitar a cidade. A partir da experiência de grupos que ocupam as margens urbanas em contextos precarizados, marcados normalmente por uma urbanização informal, pretendemos partir para um desvelamento de suas formas criativas produzir território e memória, portanto, de fazer a cidade. Nesta dinâmica nos interessa entender o universo de relações nos quais os ocupantes das margens estão inseridos para produzir suas vidas; tanto as relações de nível local, próprios a um território de referência, como as relações institucionais com agências e agentes de poder público, das universidades, de organizações da sociedade civil. O ênfase entre as dimensões local e global da experiência é central para o entendimento do fazer a cidade a partir das margens (SANTOS, 1994).
A proposta é de localizar este trabalho dentro de uma antropologia urbana, uma antropologia da cidade, nos termos de Agier (2011) que interpreta a cidade não como uma dimensão externa aos habitantes, globalizante e que pode ser analisada na sua totalidade, e tampouco numa perspectiva individualizante, tendo como referência o mundo rural, nos termos da Escola de Chicago. Para o autor, uma antropologia da cidade deve escapar a essas concepções, bem como “emancipar de qualquer definição normativa e a priori de cidade para poder procurar a sua possibilidade por toda a parte, trabalhando para descrever o processo”(AGIER, 2011, p. 37). Há um deslocamento chave no pensamento do autor para a construção do seu argumento sobre o que é a cidade para quem faz a cidade.
Posterior às reflexões que inscrevem esse trabalho no âmbito de uma antropologia da cidade, cabe apontar as categorias de análise que serão utilizadas para nortear este estudo. Destacam-se os modos de habitar como categoria central, conectando diferentes conceitos que irão tecer as reflexões teóricas desse
trabalho. O habitar é tratado aqui, na relação com a memória. “Trata-se, na verdade, de memórias de épocas diferentes que são recapituladas e mantidas em reserva nos lugares onde elas estão escritas” (RICOEUR,2008). As narrativas tornam o tempo humano, cortam a pretensão universal do tempo, abrindo-se para uma temporalidade. Mas essa temporalidade deve ser pensada como emaranhado de narrativas que se misturam ao tempo do mundo e ao tempo vivido.
Os modos de habitar são realidades plurais, práxis e construções culturais, situando-os nos “entre-lugares” (BHABHA, 2010), margens vivas, espaços em construção e espaços de contestação. Os entre-lugares contrapõem os essencialismos, porque são espaços de fronteira e podem ser pensados enquanto espaços de criatividade, performance, contestação política e de múltiplas estratégias de sobrevivência. (BHABHA, 2010) articula o conceito de comunidade contrapondo a ideia de homogeneidade, identidade, linearidade. (BHABHA, 2010) fala de uma “solidariedade afiliativa” para pensar comunidade como uma “leitura minoritária”, inserindo o elemento da subversão com vistas a perturbar uma ordem estabelecida. Essas experiências minoritárias, esse espaço da contestação, que emerge dos entre-lugares, podem ser estabelecidas de forma consensual ou conflituosa. As fronteiras são sobrepostas e fluidas, de modo que os conflitos e os traços diacríticos da cultura não desaparecem,mas são condições da própria cultura. Nesse sentido, os movimentos de diferenciação,os antagonismos e os conflitos são elementos constitutivos dos próprios modos de habitar (BHABHA, 2010).
Em nossa perspectiva, para tratar a cidade como uma expressão cultural de uma realidade social é preciso transcender o conceito de cidade como um território administrativo, um espaço sociocultural e tecnológico definido por bases mercadológicas de sentido. Nossa intenção é dar foco para o quê os habitantes fazem no território da cidade e como essas ações inventam a cidade. Sem desconsiderar as narrativas normativas sobre a cidade representada por atos político-administrativos e pelos saberes de urbanistas, engenheiros e empresários (pois esses também são fatores de invenção da cidade), a intenção deste projeto é focar a investigação em saberes e práticas que “inovam sobre” os conceitos normativos e objetivados sobre a cidade. A intenção é pensar as relações na e da cidade como ações simbólicas muito próximas ao programa teórico de Wagner sobre simbolização:
“Especificamente, leva adiante a idéia central (...) de que todas as simbolizações dotadas de significado mobilizam a força inovadora e expressiva dos tropos ou metáforas, já que mesmo símbolos convencionais (referenciais), os quais não costumamos pensar como metáforas, têm o efeito de ‘inovar sobre’ (isto é, ‘ser reflexivamente motivados em contraste com’) as extensões de suas significações para outras áreas. Assim, Habu [aqui visto como cultura] deriva significado cultural de atos criativos de entendimento inovador, construindo metáfora sobre metáfora de modo a redirecionar continuamente a força de expressões anteriores e subsumi-la em novas construções.” (2010:17)
Se assumimos a cidade como uma “invenção cultural”, nos termos de Wagner, ela não deve ser vista exclusivamente como a expressão de narrativas que a definem como um espaço moral e de trabalho único, mas através da dinâmica que coloca seus sentidos convencionais em risco, no processo de “extensão” de sentidos que constitui a cidade como um espaço coletivo significativo. Por este ponto de vista é que consideramos importante estudar a cidade em suas margens, em seus espaços de fronteira, em suas periferias.

Metodologia

Para além de uma abordagem metodológica, a utilização de uma perspectiva etnográfica para estudar a cidade traz uma especificidade epistemológica na forma como dimensionamos a realidade os contextos urbanos. Dois autores podem esclarecer melhor a especificidade deste “olhar”. Magani (2012) trata a questão a partir das perspectivas “olhar de fora e de longe” e “olhar de perto e de dentro”. O olhar de fora e de longe remete às abordagens da cidade, em que são privilegiados os aspectos macrossociais, com ênfase nas questões econômicas, sociais, demográficas e tecnológicas. Ambas apontam para a desagregação como consequência dos processos de urbanização das cidades contemporâneas. Nessa perspectiva, a cidade se torna uma entidade externa aos seus habitantes, “parece um cenário desprovido de ações, atividades, pontos de encontro, redes de sociabilidade” (MAGNANI, 2012) e sem a presença de atores sociais, em termos
de uma dada ciência política. O olhar de perto e de dentro remete à etnografia como especificidade da antropologia em identificar as múltiplas experiências presentes na dinâmica urbana que são desprezadas nas análises macro, como as estratégias de sobrevivência, redes de sociabilidade, sistemas de trocas, entre outras mediações que são tecidas no cotidiano dos habitantes. Magnani retoma a dimensão da totalidade antropológica como um “pressuposto da etnografia” e coloca a totalidade no sentido de capturar as regularidades, os padrões presentes nas dinâmicas cotidianas, nos “arranjos coletivos”. A totalidade só pode ser pensada em termos etnográficos quando construída a partir das experiências dos atores sociais, de modo que as produções teóricas do pesquisador sejam elaboradas nessa dinâmica, para que suas categorizações não se reduzam as teorias generalizantes sobre os contextos estudados. Nesse sentido, a antropologia da cidade e na cidade são “dois polos de uma relação que circunscrevem, determinam e possibilitam a dinâmica de que se está estudando” (MAGNANI, 2012).
Ao encontro dessas reflexões, conjugando esses debates teóricos, segue o posicionamento de Agier (2011), que faz uma opção analítica em favor de uma antropologia da cidade. Segundo o autor é importante observar a cidade a partir da experiência cotidiana dos seus citadinos, como ela é vivida, narrada, inventada, o que, em parte, justifica sua opção por estudos em contextos urbanos precários, “desprovidos de bens”, pelo potencial desses lugares em “fazer cidades”. O autor atenta para a dimensão relacional e cultural da cidade. As relações sociais, as formas de “produção da existência”, de reprodução da vida social, operam elementos simbólicos que podem ser entendidos a partir de rituais cotidianos. É possível pensar essa operação numa dimensão política, a partir do estabelecimento de laços políticos, quando grupos se identificam com determinadas pessoas que possam pensar
“a fundação da cidade a partir das margens urbanas - bairros populares ou ‘invasões’, acampamentos provisórios de refugiados, deslocados e migrantes – ou, para dizê-lo de maneira mais geral, pensar acidade a partir de lugares precários e certo despojamento de bens, sentidos e relações que desenha a sua primeira imagem, a de uma cidade nua, simples aglomeração densa e heterogênea que se fixa e se transforma sem projeto inicial de cidade” (AGIER, 2011, p. 40).
Em termos das suas reflexões sobre os saberes urbanos, Agier (2011) também retoma a questão da totalidade, a relação entre a parte e o todo, não no sentido substancial, mas de forma processual. A questão se coloca: como produzir uma teoria antropológica sobre a cidade, visto que a antropologia trabalha com dados empíricos e com processos microssociais? Através de seu modelo teórico-conceitual, o autor coloca como alternativa a essa questão conceitos intermediários: região, situação e rede. A região é como os atores urbanos definem o lugar, registram as identidades, que não são substâncias, mas identidades relativas. Segundo o autor, a “região moral permite à análise aceder a uma compreensão do caráter relativo e incerto das fronteiras espaciais e indenitárias da cidade” (AGIER, 2011, p. 73). A política da situação são fronteiras espaciais que se estabelecem pela interação. Pensando em nível micro social é “um sentido partilhado” e contextualizado. A “situação é inerente ao contexto”. Trata-se de situação-contexto como condição para se compreender os fenômenos urbanos (AGIER,2011). Ainda sobre uma antropologia da cidade, para Agier (2011), o fato de a antropologia trabalhar com os processos micro sociais, em uma pesquisa “relacional, local e ‘micrológica’” (AGIER, 2011, p. 37), não é uma barreira para uma antropologia da cidade; ao contrário, a antropologia na cidade é a própria condição para uma antropologia da cidade.
A pesquisa pretende apoiar-se na metodologia da etnografia, pautada na observação participante junto aos atores da pesquisa e no desenvolvimento de entrevistas semi-estruturadas. Também é intenção desta pesquisa agregar o trabalho com memória e narrativa junto aos procedimentos metodológicos clássicos de etnografias, visando aprofundar o entendimento dos processos de territorialização na cidade (SEGATO, 2005).
Como foco de observação teremos duas classes de relações distintas em termos de estratégias metodológicas:
1) Pretende-se realizar um reconhecimento de comunidades, para compreender:
 Como constituem no cotidiano um “modo de vida” nos bairros;
 Como se dá a relação entre o poder público e a comunidade na conformação desses “modos de vida”;
 Quem são as agências de legitimação específica para a comunidade, ou seja, as relações que tornam objetivo um território habitado;
 Como se expressam os elementos culturais e de memória na conformação do território habitado;
 Quais as relações políticas que interferem na constituição dos “modos periféricos de habitar” em Pelotas.
2) Pretende-se realizar um reconhecimento de políticas que tratam da conformação de modos de habitar a cidade, para compreender:
 As principais instituições que agem para produzir pensamento e ação sobre a cidade e seus habitantes, sejam elas organismos do poder público ou da sociedade civil.
 Como as agendas sobre a cidade são construídas pelos modos de ação dessas instituições e/ou entidades, e como essas mesmas agendas se relacionam com as “comunidades” que serão afetadas por estas ações.

Indicadores, Metas e Resultados

- Como já foi colocado anteriormente, promover pesquisas e projetos de extensão que envolvam as relações entre cidade e cultura no âmbito das atividades do GEEUR e do Bacharelado e Pós-Graduação em Antropologia. Além disso, procurar vincular a pesquisa a outros grupos de pesquisa que trabalhem como o tema no âmbito da UFPEL e em outras instituições de pesquisa. Promover projetos de extensão com atores da sociedade local que estejam envolvidos com o tema da pesquisa.
- A relevância desse estudo se deve pela possibilidade de elencar as referências culturais de constituição dos territórios periféricos da cidade de Pelotas, contribuindo para futuros estudos sobre a cidade, bem como para a elaboração de políticas públicas.

Equipe do Projeto

NomeCH SemanalData inicialData final
Aline Cunha da Fonseca
Cláudia Tirelli
FRANCISCO LUIZ PEREIRA DA SILVA NETO6
Flávia Segat
GUILHERMO ANDRÉ ADERALDO
ISABEL SOARES CAMPOS
LEANDRO BARBOSA DOS SANTOS
LUCAS ANDERSON DE CARVALHO
RENATA BRASIL BARROS LOPES

Fontes Financiadoras

Sigla / NomeValorAdministrador
CAPES / Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível SuperiorR$ 1.250,00Coordenador

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