O projeto contempla as investigações que vêm sendo realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa heduca (História e Educação: textos, escritas e leituras), cadastrado em 2020 no Diretório de Grupos do CNPQ, e vinculado ao PPPGH/UFPel. A investigação proposta tem como aporte teórico o referencial advindo da História Cultural, com viés histórico, sociológico e/ou antropológico, em diálogo com os campos de pesquisa da História do Ensino de História, da Didática da História, da História do Livro e da Leitura, e da Cultura Escrita. O objetivo geral está centrado em compreender a circulação e os usos públicos da história, em diferentes instâncias sociais, expressos em textos, escritas e práticas de leitura de conteúdos históricos, de modo mais específico, analisar como os atores sociais historicamente apropriam-se do passado em processos de constituição da consciência histórica por meio da narrativa escrita. Nessa direção, pelo menos três possíveis abordagens podem contribuir para a abrangência da problemática apresentada, a saber: a análise dos textos, das escritas e das leituras de conteúdo histórico.
Para compreender a circulação e usos públicos do passado, busca-se embasamento teórico na Didática da História, a partir do referencial oferecido por autores como Rüsen (2010, 2015), e Bergmann (1990). Para Rüsen a formação histórica consiste em “todos os processos de aprendizagem em que a “história” é o assunto e que não se destinam, em primeiro lugar, à obtenção de competências profissionais”. (2010, p.48). Neste sentido, a disciplina Didática da História entendida como a ciência da aprendizagem histórica, se ocupa de analisar “as formas e funções do raciocínio e conhecimento histórico na vida cotidiana, prática. Isso inclui o papel da história na opinião pública e as representações nos meios de comunicação de massa”. (RÜSEN, 2011, p. 32). Assim, o campo de pesquisa em Didática de História busca compreender a formação complexa da consciência história dos indivíduos, entendida como a “constituição de sentido da experiência do tempo”. (RÜSEN, 2010, p.59). Ou seja, investigar através das narrativas histórica a consciência histórica dos indivíduos, compreendia como a “suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo (RÜSEN, 2010, p.57). Não se trata, portanto, da simples referência ao passado, mas de uma consciência do passado que possui relação com o entendimento do presente e com a expectativa de futuro.
Assim, a compreensão alargada de história e, por conseguinte de conhecimento histórico, discutida por Bergmann e Rüsen, consiste na relação que os indivíduos estabelecem com o passado ao produzirem sentido para vida prática, a partir de aprendizagens desenvolvidas em diferentes práticas sociais, como:
a) história vivida e experimentada no seu devir de todos os dias; b) história não experimentada nem vivida imediatamente, ou seja, transmitida, cientificamente ou não; c) história apresentada pela Ciência Histórica como uma disciplina específica, com as suas problemáticas específicas, intenções, hipótese e os seus pressupostos, teorias, métodos, categorias e resultados. (BERGMANN, 1990, p.30).
Ainda, para Rüsen (2010a), o aprendizado histórico ocorre quando o movimento de busca do conteúdo empírico do saber histórico nasce do próprio sujeito, de sua curiosidade empírica. Uma vez que o “aprendizado histórico não ocorre apenas no ensino de história, mas nos mais diversos e complexos contextos da vida concreta dos aprendizes, nos quais a consciência histórica desempenha um papel." (2010a, p.91). Nesse sentido, a cultura histórica, definida como o modo pelo qual uma dada sociedade promove usos do passado, considerando a produção, transmissão e recepção do conhecimento histórico, consiste em sentidos históricos compartilhados (Rüsen, 2015). A Cultura Histórica como a articulação prática e operante da consciência histórica na vida de uma sociedade, expressa a forma como o passado torna-se relativamente coerente e vivo em uma dada sociedade, contemplando, contudo, múltiplas narrativas e distintos enfoques. Esse conjunto de ideias e representações do passado circulam nos mais variados formatos e suportes, a exemplo, dos romances históricos, dos filmes, dos livros didáticos, revistas de história, entre outros, que constituem a cultura histórica e que orientam as ações práticas no presente.
Como bem questiona Cerri (2011), por que se investe tanto em história atualmente? Quanto de passado há em nosso presente, e o quanto esse investimento determina nosso futuro? E ainda:
Para que a mobilização de um complexo empresarial de distribuição do conhecimento histórico, que vai de editoras de livros acadêmicos a livros de divulgação para o grande público, além de conteúdos digitais nas mais diversas mídias? Sobretudo, como explicar que esse movimento social do conhecimento histórico não faça conta da estrutura tradicional que, imaginamos, vai da produção de textos especializados à sua divulgação no sistema escolar?(CERRI, 2011, p. 22).
Por certo que a representação do passado e os sentidos do passado, mobilizam investimentos na produção, distribuição e consumo de textos históricos, que ultrapassam o consumo cultural, atingindo interesses econômicos e políticos, de forma sistematizada na sociedade atual. Tal perspectiva não pode ser negligenciada, visto que a consciência histórica dos indivíduos é constituída pela cultura histórica na qual esses estão imersos, diante dos diferentes (des)usos do passado. Neste sentido, o exercício de compreensão das formas de circulação e apropriação do passado na sociedade atual, contribui para que de forma propositiva e dialógica, o ensino escolar e acadêmico da história possa orientar os sujeitos no tempo, evitando usos indevidos e concepções históricas superadas (BERGMANN, 1990).
Ainda, em diálogo com o campo de pesquisa em História da Educação, mais especificamente no que ser refere a História do Ensino de História, percebe-se como significativo investigar as maneiras como a história constituiu-se como disciplina escolar, as concepções de ensino, as funções deste conhecimento escolar, as mudanças e permanências ao longo do tempo, entre outros processos históricos que possibilitam compreender as concepções teóricas e metodológicas do ensino e aprendizado da história. Para tanto, os textos escritos para esse universo, direcionados tanto para os professores quanto para os estudantes, se revelam como importantes objetos e fontes que pesquisa. Conforme apresenta Rüsen (2011), a concepção de que a didática da história compreende o ensino da história escolar colocando a pesquisa histórica e a educação histórica em campos opostos, é totalmente equivocada e limita a prática historiográfica. Ainda,
Para aqueles que estão atentos à história da disciplina de história, especialmente acerca da sua transformação em uma atividade profissionalizada, acadêmica, não deveria ser surpreendente que a didática possa desempenhar um papel na escrita e na compreensão histórica. (...) Ensino e aprendizagem eram considerados no mais amplo sentido, como o fenômeno e o processo fundamental na cultura humana, não restrito simplesmente à escola. (...) Durante o século XIX, quando os historiadores definiram sua disciplina, eles começaram a perder de vista um importante princípio, a saber, que a história é enraizada nas necessidades sociais para orientar a vida dentro da estrutura tempo. (Rüsen, 2011, p. 24, 25).
A “história mestra da vida” que até o século XIX norteou a historiografia ocidental, como princípio básico da escrita da história, posteriormente foi sendo desconsiderada em nome da institucionalização e profissionalização da história. Nesse processo histórico várias questões podem ser colocadas, entre elas: Quais princípios nortearam a escrita acadêmica e a escrita didática da história? Quais os distanciamentos possíveis de serem dimensionados, a partir da análise da historiografia didática e acadêmica da história? Quais as possibilidades de interconexão oferecidas, discutidas e praticadas no campo da Didática da história?
No que se refere aos meios de circulação das ideias e percepções de como o passado da humanidade se relaciona com experiências do presente e perspectivas de futuro, observa-se o quão rica é a aproximação com as pesquisas realizadas no campo da Cultura Escrita, ou Culturas do Escrito . Chartier (2001) conceitua e exemplifica o que compreende a cultura do escrito:
E a cultura do escrito vai desde o livro ou o jornal impresso até a mais ordinária, a mais cotidiana das produções escritas, as notas feitas em um caderno, as cartas enviadas, o escrito para sim mesmo, etc.[...]. Na cultura do escrito há um continuum desde a prática das escritas ordinária até a prática da escrita literária (CHARTIER, 2001, p. 84).
Em uma sociedade grafocêntrica em que todas as relações, de algum modo, são mediadas pelo escrito, compreender como os indivíduos se apropriam do passado por meio do escrito, pode enriquecer o processo de pesquisa levando a resultados mais consistentes sobre a constituição da consciência histórica. De igual modo, em uma perspectiva histórica ou sociológica, a História do Livro e da Leitura, ao investigar como as ideias eram transmitidas através do registro escrito, em diálogo com a oralidade, possibilita problematizar os modos de pensar historicamente de determinada sociedade. Neste sentido, ao analisar os textos, as escritas e as leituras de conteúdo histórico, em diálogo com conceitos próprios do campo de pesquisa das Culturas do Escrito, considera-se possível investigar a maneira pela qual as sociedades, grupos e/ou indivíduos ofereciam/oferecem sentido ao passado com a finalidade de orientar a vida prática através do tempo, ao produzirem e/ou apropriarem-se de narrativas históricas por meio do escrito.